Parecer jurídico na nova Lei de Licitações (parte 2)

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Conforme já destacamos no artigo que precedeu o presente texto, o tema relacionado ao parecer jurídico na nova Lei de Licitações seria abordado em três oportunidades. Na primeira delas, tratamos do artigo 53, caput e §1º; nesta segunda parte, analisaremos os §§3º, 4º e 5º do referido artigo 53.

Inicialmente, a norma prevista no §3º assinala que “encerrada a instrução do processo sob os aspectos técnico e jurídico, a autoridade determinará a divulgação do edital de licitação na forma do artigo 54”. Significa dizer que o parecer jurídico é elemento indispensável para a fase preparatória do processo licitatório, salvo nas hipóteses previstas no §5º do mesmo artigo 53.

Importante questionar, contudo, se a ausência do parecer jurídico — excetuadas as hipóteses previstas no §5º já mencionado — macula a validade do processo licitatório. Para responder a essa indagação, é mister destacar, preliminarmente, o conteúdo do caput do referido artigo 53, segundo o qual a análise jurídica é elemento indispensável ao controle prévio de legalidade da contratação. A interpretação conjunta desses dois dispositivos nos leva à conclusão de que a ausência do parecer jurídico compromete sobremaneira o controle da legalidade do processo licitatório, mas não necessariamente eiva de nulidade o instrumento convocatório. Nossa opinião encontra eco na doutrina [1], bem como vai ao encontro do posicionamento adotado pelo Tribunal de Contas da União, no sentido de que a ausência de parecer jurídico obrigatório implica tão somente a responsabilização da autoridade competente que não o solicitou de forma tempestiva, ainda que o parecer venha a ser posteriormente elaborado e juntado ao processo:

“A inclusão a destempo de parecer jurídico ratificando todo o processo licitatório não supre a falha quanto à ausência deste elemento essencial à aprovação das minutas dos instrumentos convocatórios” (Acórdão 7.857/2012, 2ª Câmara, relator ministro Aroldo Cedraz).

Todavia, deve-se assinalar que, diferentemente da norma contida no artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993, o §3º do artigo 53 não se limita ao exame do edital, na medida em que o legislador destaca que a análise deve ocorrer sobre todo o processo, avaliando-o sob o prisma jurídico. Dito de outro modo, a apreciação a que se refere o §3º não se limita ao conteúdo do edital, devendo alcançar todos os atos que antecedem a confecção deste. Tal afirmação se justifica pela própria redação do §3º, que condiciona a publicação do edital e, por consequência, a realização da fase externa, na conformidade do artigo 54, à precedente opinião jurídica sobre toda a fase interna.

De regra, é inquestionável que duas funções são ínsitas ao parecer jurídico: a função de fiscalização e a de colaboração/orientação. Quanto à fiscalização, importa destacar que o artigo 169, II, da Lei nº 14.133/2021, no capítulo destinado ao controle das contratações públicas, rotula o parecer jurídico, ao lado do controle interno, como a segunda linha de defesa no âmbito desse controle. No que concerne à colaboração ou orientação, deve o parecerista não somente indicar as falhas, mas avaliar possíveis soluções a serem adotadas pelo gestor público, expondo alternativas quanto à proposta de escolha mais adequada e abordando, a teor da previsão do artigo 20, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), as consequências práticas da decisão.

Nesse ponto, como já destacamos no texto anterior, a lei não foi suficientemente clara quanto aos limites do conteúdo do parecer jurídico. É curioso, por exemplo, avaliar se o controle exercido pelo parecerista poderá adentrar em critérios relativos, por exemplo, à economicidade da contratação, bem assim quanto à própria necessidade de realização da licitação. Quer-se com isso questionar se é deferível ao parecerista avaliar a escolha do objeto licitado.

Cite-se, por exemplo, um processo de contratação pública deflagrado por um pequeno município, extremamente pobre, cujo objeto seja a aquisição de um veículo de luxo para atender às demandas da prefeitura municipal. Em nosso caricato exemplo, imaginemos que, na fase preparatória, o preço médio, atendidas as características insertas no objeto constante no termo de referência, seja em importe elevadíssimo. Suponhamos que, nesse nosso exemplo, todos os demais aspectos jurídicos formais tenham sido atendidos. Diante de tal contexto, indaga-se: poderá o parecerista exercer um controle com base na economicidade ou tal mister é ato puramente discricionário da autoridade máxima competente? Intenta-se perquirir se, ao não apontar a economicidade na referida contratação, estaria o parecerista jurídico sujeito à responsabilização nos termos do artigo 28 da LINDB.

No contexto de contratação pública no Brasil, não é incomum nos depararmos com licitações cujos objetos são questionáveis e, em algumas ocasiões, minimamente chistosos. Nesse particular, ao não alertar o gestor sobre a excentricidade do objeto licitado, entendemos que se poderia cogitar de responsabilização do parecerista, tese esta que é reforçada pelo conteúdo da previsão normativa do inciso II do artigo 169 da Lei.

A redação do §3º, conjugado ao artigo 53, caput e §1º, limita-se, inquestionavelmente, à análise de conteúdo jurídico. Entretanto, sempre remanesce a incerteza sobre a possibilidade de interpretação de conteúdo econômico (economicidade), viabilidade da contratação, eficiência, proporcionalidade, entre outros. A nosso sentir, não apenas poderá, como também deverá, o parecerista avaliar tais critérios, alertando o gestor público sobre as possíveis implicações que terão o condão de comprometer a contratação pública.

Em outras palavras, deve o órgão de assessoramento jurídico limitar-se à análise formal da lei ou poderá adentrar em critérios principiológicos? Para a solução dessa indagação, é necessário perpassar pelo conceito de legalidade. Segundo nosso entendimento, já explanado nos parágrafos anteriores, o conteúdo da legalidade expande-se para além da verificação de elementos formais da lei, avaliando a lei e o Direito, no qual se encontram previstos os princípios jurídicos, notadamente os que irradiam o exercício da função administrativa, capitulados no artigo 37, caput, da Constituição Federal, bem assim no artigo 5º da Lei nº 14.133/2021, com destaque aqui para os da eficiência, da economicidade, da proporcionalidade (solução necessária, adequada e proporcional) e da razoabilidade.

O §4º prediz a possibilidade de o órgão de assessoramento jurídico da Administração realizar controle prévio de legalidade de contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesão a ata de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos. Parte desse dispositivo já é previsto no inciso VI e no parágrafo único do artigo 38 da Lei nº 8.666/1993. Ocorre que o §4º da Lei nº 14.133/2021 vai mais além, eis que prevê a necessidade de opinião jurídica em qualquer concerto firmado pela Administração Pública, navegando ao encontro do artigo 26 da LINDB, que contextualiza norma geral para a celebração de compromissos com os interessados, desde que ouvido o órgão de assessoramento jurídico.

Arrematando a análise do último dispositivo a que nos referimos no presente texto, o §5º soa um tanto polêmico, porquanto dispensa “a análise jurídica nas hipóteses previamente definidas em ato da autoridade jurídica máxima competente, que deverá considerar o baixo valor, a baixa complexidade da contratação, a entrega imediata do bem ou a utilização de minutas de editais e instrumentos de contrato, convênios ou outros ajustes previamente padronizados pelo órgão de assessoramento jurídico”.

Anuímos inteiramente a esse conteúdo, pois a dispensa quanto à análise jurídica prevista no dispositivo legal mencionado não deveria mesmo ocorrer por ato da autoridade máxima competente, mas, sim, pelo próprio órgão de assessoramento jurídico. Isso porque a mensuração quanto aos valores e contextos em que, em tese, é prescindível a análise do órgão de assessoramento jurídico carece da própria análise jurídica.

O legislador não poderia conferir à autoridade máxima competente um grau de discricionariedade em temas cuja análise jurídica é indispensável. Tomando como exemplo expressão mencionada na própria lei, se já existe uma minuta padronizada de edital, a eficiência e celeridade quanto à contratação pública nesse particular caso não restaria comprometida se houvesse a remessa dos autos do processo ao órgão de assessoramento jurídico, que poderia, aferindo a situação do caso em concreto, adotar a minuta por ele mesmo já padronizada.

É dizer, a avaliação desses conceitos não cabe, necessariamente, à autoridade máxima competente, mas, sim, ao próprio órgão de assessoramento jurídico, eis que “o grande problema reside em verificar se, na vida real, aquele modelo de edital é adequado e satisfatório” [2].

Logo, em não havendo a análise jurídica pelo órgão de assessoramento jurídico, a dispensa do parecer poderá comprometer a higidez e importância do processo de contratação, tornando letra morta a previsão do artigo 169, II, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Por fim, é importante mencionar que a redação do §5º não impede o envio dos autos ao órgão de assessoramento jurídico para análise mais detida do caso em concreto. A faculdade disposta na norma não impede que a autoridade máxima competente delibere pela tomada de decisão empós a prolação de parecer jurídico, galvanizando a melhor escolha administrativa. É importante ponderar cada caso, evitando a instauração da fase externa de um processo de contratação significativamente complexo, porém, distraído da opinião que, juridicamente, poderia constar nos autos.

[1] Para Marçal Justen Filho, a ausência de parecer jurídico não macula a validade do ato. Segundo o autor, o que pode haver é a responsabilização funcional dos agentes que deixaram de observar a formalidade do ato. “JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021, p. 641”.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021, p. 642.


 é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.

 é advogado, pós-graduado em controle externo, mestrando em Direito Administrativo e auditor de controle externo do TCU.

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