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Em outras oportunidades, por intermédio de textos publicados nesta coluna, discorremos, em três distintos artigos, sobre o parecer jurídico a que se refere o artigo 53 — e respectivos parágrafos —, bem assim o artigo 10, todos da Lei nº 14.133/2021. Sem qualquer pretensão terminativa, os referidos escritos, ainda minutados (e pensados) tão logo publicada a lei, discorreram sobre o conteúdo e a extensão das embrionárias normas que sucederam a sistematização até então contida no parágrafo único do artigo 38 da Lei nº 8.666/1993.
Por se tratar de uma temática assaz polêmica, que, isolada ou conjuntamente, aguça os mais diversos posicionamentos jurídicos externados sobre o tema, ao ensejo de alguns julgados apresentados nos últimos meses, faz-se necessário incursionar pela ideia do parecerista como autoridade, é dizer, como o “agente público dotado do poder de decisão”, tal como previsto no VI do art. 6º da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
De tal forma, muito embora o tradicional conceito de parecer jurídico não encarte e absorva qualquer denotação de ato de autoridade, não tendo, por consequência, exterioridade dispositiva, algumas opiniões, que se encontram encampadas em decisões recém-proferidas, opõem-se ao cerne de sua clássica conceituação, deferindo — e impondo — ao parecerista o ônus de decidir, extensivamente, acerca da situação jurídica sobre a qual lhe é requisitada opinião.
Inegável, sob qualquer perspectiva, que a Lei nº 14.133/2021 ampliou, profundamente, a concepção até então envolta à natureza jurídica do parecer jurídico proferido em processos de contratação pública, não mais se tratando, portanto, de uma simplória opinião jurídica com a qual pode ou não haver uma usual concordância. Por outro lado, o parecer jurídico a que faz referência o artigo 53 da nova lei não é um modesto arquétipo que se propõe tão somente a um reduzido checklist, limitando-se à conferência de elementos que devam ou não constar na formalidade ínsita ao processo licitatório.
Bem se diga que o parecer jurídico, como ato administrativo sem poder decisório, el dictamen, emitido acerca de uma questão jurídica que quadre ao apoio para o tomador da decisão, ato preparatório, serviente à elaboração de atos decisórios, já não mais possui o mesmo significado, tendo em conta a expressiva robustez em decorrência do contexto que lhe foi imprimido pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Ao parecerista, sobremais em processos licitatórios, era dada a função de simplesmente auxiliar na tomada de decisão administrativa, por quem, por óbvio, a norma atribua o dito poder de decidir. Ocorre que, pela amplitude normativa inserta nos extensivos deveres desaguados ao órgão de assessoramento jurídico, o parecer deve conter algo para além de uma simples opinião que guarneça a formação da tomada de decisão final.
Perceptivelmente, ao preconizar, no inciso II do § 2º do artigo 53 da Lei nº 14.133/2021, que na “elaboração do parecer jurídico, o órgão de assessoramento jurídico da Administração deverá redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com a apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com a exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica”, deverá haver uma apreciação para além de uma simples formalidade jurídica, pelo que, em determinadas situações, o parecer, a depender do conteúdo nele constante, pode vincular a discricionariedade da autoridade administrativa, que, em tese, teria a atribuição/competência para a tomada de decisão.
Inquestionavelmente, o parecer jurídico em processos licitatórios, por decorrência de norma que dispõe em igual sentido, é obrigatório. Todavia, a ampliação dos elementos nele engranzados potencializam, em determinados casos, a suscetibilidade de lhe conferir caráter vinculante, desaguando na alternância do agente público que é dotado, à luz do artigo 6º, VI, de poder de decisão.
Trata-se de uma sombra multifacetada, amiúde insegura, sobremais porque, ao parecerista jurídico, não remanescem conhecimentos múltiplos aptos a apreciar “todos os elementos indispensáveis à contratação”, expertise esta alinhada tão apenas por quem é afeto à respectiva área cujo domínio advém da formação apropriada para tanto.
Ocorre que, como já mencionado, a amplitude interpretativa a ser conferida ao artigo 53 condiciona a elaboração do parecer jurídico a um nível de extenuação da matéria sobre a qual lhe é solicitada a consulta, esgotando, a depender do viés expositório do órgão de controle, o poder decisório e discricionário da autoridade que teria o poder de decisão.
Mais que isso, se o gestor fundamenta sua decisão baseado na opinião fincada no parecer jurídico, tratar-se-á, neste caso, da formação de um verdadeiro ato administrativo complexo, posicionamento este que é ratificado pelo conteúdo da norma prevista no artigo 10, da Lei nº 14.133/2021, que impõe, resumidamente, ao órgão de assessoramento jurídico a obrigatoriedade da defesa do agente público que agiu em conformidade com os termos do parecer jurídico.
Logo, para que o ato administrativo não seja tipificado como complexo, esvaziando qualquer poder decisório ao parecerista e elidindo, no mesmo sentido, a vinculação que pode ser atribuída à opinião que consta no parecer jurídico, necessário se faz que o agente público com poder de decisão adote outra providência, caso não concorde com a manifestação ínsita na opinião requestada.
Pelo conteúdo das normas constantes no artigo 53 e 10, da Lei nº 14.133/2021, quando prolatada decisão fidedignamente aderente ao parecer jurídico ofertado no processo licitatório, a decisão em si resume-se ao próprio parecer, como ato próprio, sendo a autoridade competente, para fins do disposto no artigo 6º, VI, quem, do órgão de assessoramento jurídico, emitiu o juízo jurídico.
A exclusão de tal premissa somente tem lugar se outra decisão for emitida, contrariamente à opinião assentada no parecer jurídico, naturalmente pela autoridade competente, que, neste caso, possui, por expressa deferência normativa, o poder decisório, mas desde que seja juridicamente fundamentada, contrapondo-se aos argumentos, também jurídicos, alinhados no parecer.
Pelo que se percebe, o parecer jurídico, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, tem proeminência vinculante, por puro desígnio da norma jurídica, exclusive, como já analisado, se a autoridade originariamente competente justificar, de forma motivada, a não adesão ao parecer jurídico, proferindo, espontaneamente, outra decisão, comprobatória do porquê houve o afastamento das conclusões expostas.
Em tal sentido, segundo a linha de raciocínio até então adotada, o parecer jurídico a que faz alusão o artigo 53 é, para além de indiscutivelmente obrigatório (atendimento à formalidade), também vinculante, vinculação que se mantém sob condição suspensiva, a qual deixa de existir quando a autoridade presumivelmente competente não aquiesce com a opinião jurídica e promove outra decisão em sentido contrário, remanescendo, por força da lei, tão apenas a obrigatoriedade.
Em outras palavras, para que o parecerista não seja responsabilizado por suas opiniões, ainda que somente jurídicas, norma exoneratória de imputação deve existir, tal como proposto no Projeto de Lei nº 1958/2022, que, visando à alteração no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, estabelece que não será imputada responsabilidade ao advogado pela emissão de parecer ou opinião jurídica, salvo comprovação de circunstâncias concretas que o vinculem subjetivamente a propósitos ilícitos.
Quanto ao mais, em abono à plenitude e engrandecimento da Advocacia Pública, a lei também exigiu maiores responsabilidades. Dito de outro modo, a vinculação do parecer jurídico na Lei nº 14.133/2021 é a concretização do conselho a Peter Parker por seu tio Ben: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.