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O questionamento acerca das contratações públicas decorrentes da inexigibilidade de licitação sempre foi um dos temas mais controversos, independentemente da capitulação e critério legais eleitos pela Administração Pública. Logo, contratar diretamente, sem o ordinário processo de disputa, pode estimular francas insinuações quanto à saudável isonomia, ínsita às contratações efetivadas no cortejo que é alheio à iniciativa privada.
Dentre tantas hipóteses (não exaustivas) encontráveis no corpo normativo regente da matéria, o artigo 74, II, da Lei nº 14.133/2021 vem ocasionando os mais acalorados debates, notadamente em face das contundentes indeterminações dos termos propositalmente utilizados pelo legislador.
Certo é que, nos termos do previsto em lei, a inexigibilidade ocorre quando inviável a competição, tal como descrito no caput do dispositivo legal acima mencionado. Ao enumerar, sem terminação, as hipóteses encontráveis nos incisos, diz a norma ser inexigível a licitação para “contratação de profissional do setor artístico, diretamente ou por meio de empresário exclusivo, desde que consagrado pela mídia especializada ou pela opinião pública”.
Primeiramente, não há como negar que persiste uma dúvida sobre alguns conceitos — manifestamente indeterminados — previstos no mencionado dispositivo legal. Isso porque, face à dimensão territorial do país, a diversidade cultural é espaçosa e dilatada, não sendo incomum um profissional do setor artístico ser, por exemplo, consagrado no Nordeste e, ao mesmo tempo, completamente desconhecido no Sul do Brasil. Tratam-se de culturas, gostos, peculiaridades e idiossincrasias próprios de cada região.
Para além da multifacetada e proveitosa heterogeneidade cultural brasileira, ainda assim o legislador faz referência a duas expressões igualmente complexas e amiúde controversas, senão polêmicas, ao se utilizar dos termos “mídia especializada” e “opinião pública”. Como se tratam de conceitos imprecisos e inconstantes, inteiramente mutáveis ao sabor do tempo e do espaço (Brasil), é quase impossível asseverar que um artista é mais ou menos consagrado, porque a opinião pública varia e, com ela, alteram-se os gostos e preferências, o que é correlativo à natureza humana.
Quando se trata de iniciativa privada, o próprio público é o mais fiel referencial para atestar ou não a qualidade do artista. Logo, a reprovação ou aprovação se reduz a aspectos econômicos, sendo suficiente a aderência à compra de ingressos em eventos promovidos por particulares.
Por outro lado, em se tratando da Administração Pública, a problemática desponta sob os mais variados vieses, seja porque a escolha, por si só, já é confusa, dependendo da veleidade e da volição de quem seleciona, seja porque não existe qualquer critério objetivo que possa mensurar, firmemente, o que deve ser entendido por opinião pública ou, lado outro, mídia especializada.
Na verdade, nem mesmo no contexto da Lei nº 8.666, ainda no ano de 1993, era praticamente impossível assegurar, com maestria terminante e definitiva, os mesmos conceitos atualmente repetidos na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Atualmente, a questão ainda é mais embaraçada, em decorrência, principalmente, dos avanços e dispersão artísticos proporcionados pelas redes sociais.
O autor que vos escreve, leitor, seguramente é desconhecedor de vários “artistas consagrados”, porque a minha opinião, inteiramente particularizada, não coincide com a opinião do público que faz coro ao — para mim — desconhecido artista.
Afora essas incontornáveis aperturas práticas — e, por que não, insolúveis —, outro critério, não previsto expressamente na norma, amargura e angustia o gestor público: o preço. Ora, salvo se por desejo próprio do artista, não se faz possível obriga-lo a aceitar cachê mais reduzido simplesmente porque o contratante não é o privado e sim o Poder Público.
Perceba-se, assim, que, se o artista é consagrado pela mídia especializada ou pela opinião pública, certamente seu sucesso é garantia de uma contemplação de agenda que, com ou sem contratações públicas, será sempre viável. Dito de outro modo, o artista consagrado não depende do Poder Público, sendo-lhe o bastante a iniciativa privada.
Os buchichos têm vindo à tona nos últimos dias, quando, a despeito de uma rasa população e parcos orçamentos, geralmente um município pequeno contrata, por considerável quantia, um artista consagrado. O preço, neste caso, se for o mesmo ou aquém do praticado na iniciativa privada, pelo mesmo artista, é incontroversamente o de mercado.
Avistando espaço para dominar uma escolha indubitavelmente discricionária, o controle externo se alarga, geralmente se utilizando de holofrases e verdades sabidas, produzindo questionamentos quanto à contratação, não pelo valor cultural do artista (pouco importando a opinião pública), mas sim pelo preço.
Inumeráveis medidas liminares, nos mais variados graus de jurisdição, têm para todos os gostos e, na dúvida, a aderência segue na preferência por cancelar o evento, que seria destinado ao mesmo público cuja opinião confere consagração ao artista.
Mais graves ainda são as críticas, não incomuns, também oriundas da opinião pública (claramente, da outra opinião pública, desgostosa do artista contratado), que reprocham o valor recebido pelo artista como indevido, premissa que somente é válida se tal expressão econômica for diversa da praticada na iniciativa privada, conforme acima acentuado.
Diante de todas essas situações, é extremamente simples que o público que consagra terá de se satisfazer do sucesso do artista de outro modo, alijando-se de qualquer apresentação pública, porque, mesmo com consagrada opinião popular, o controle externo corteja a fantasia do interesse público, válvula de escape para toda decisão imprecisa.
Logo, salvo se por espontâneo bel-prazer, a atual conjuntura desenhada pelo controle externo, tendo por base, especialmente, as mais recentes decisões judiciais, é praticamente impossível proceder à contratação com base no artigo 74, II, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Na prática, a ausência de contratação não decorre da inviabilidade de competição, mas sim da inviabilidade de aplicação da inexigibilidade. Por precaução, gestores, procedam a uma modalidade competitiva (Pregão ou Concorrência, priorizando o preço) e esperem a reação do público.