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Declaradamente, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos priorizou a validação dos atos administrativos quando houver a presença de vícios sanáveis, de modo a evitar a repetição de procedimentos desnecessários, moldando a teoria das nulidades e concedendo nova modelagem ao princípio do formalismo moderado.
Independentemente do pródigo intento do legislador, não há, ao longo de todo o corpo normativo, qualquer conformação extrema quanto ao conceito de vícios sanáveis, albergando, por consequência, a atração para uma amplíssima margem discricionária por parte da administração, que poderá, a seu exclusivo alvedrio, prolongar ou não a repetição dos atos no processo licitatório, reproduzindo os que, supostamente, possam ser testemunhados como insanáveis.
Logo, incólume de ambiguidades, percebe-se que o julgo que recai sobre o termo insanável não prescinde de uma justificativa tão contundente, por mais aparente que possa transparecer a norma que, tratando sobre o tema, com suposição indique no sentido de motivação expressa.
Longe de qualquer dubiedade, a formal exploração motivada sobre a questionável impossibilidade de sanar o vício deve constar no processo, sob pena de invalidade do ato que declara a falha sem apontar fundamentação denotativa consistente.
Ocorre que as circunvizinhanças e adjacências utilizadas ao longo dos mais variados artigos espalhados pela Lei nº 14.133/2021 quanto à concepção da irreparabilidade do ato, segundo acima já mencionado, produzem um conteúdo multiforme, heterogêneo e passível de interpretações multíplices, que derrogam, senão em tese, mas na prática, invencíveis questionamentos sobre a irrestrita interpretação conferida ao caso em concreto.
Assim acontece em vários outros pontos espargidos pela lei, como, por exemplo, no encerramento do processo licitatório, quando, a teor do disposto no inciso I do artigo 71, o legislador deu preferência ao saneamento do ato, desde que consertável a irregularidade.
Em igual sentido, ao se referir ao julgamento das propostas, o artigo 59 contempla uma série de incisos que indicam os casos em que as propostas devam ser, rigorosa e imperiosamente, desclassificadas, concebendo o fundamento de que, caso não encontradas as hipóteses de desclassificação, o ato administrativo praticado deve ser preservado.
Inicialmente, o inciso I do artigo 59, em complemento ao caput do mesmo dispositivo legal, menciona que serão desclassificadas as propostas que “contiverem vícios insanáveis”. Tal menção normativa ultrapassa um mínimo aprendizado de obviedade, tanto quanto resguarda a higidez dos atos válidos, merecendo reprovabilidade impostergável tão apenas os vícios tidos por manifestamente nulos ou mesmo inexistentes.
Todavia, quanto a esse específico inciso, já incide, porventura propositalmente, uma margem discricionária deferida à administração, a ponto de averiguar, na prática, se se trata de vício que possa ser desconsiderado, priorizando a finalização do processo licitatório e atingindo o objetivo central do processo em si: obter a melhor proposta e firmar o contrato administrativo.
Longe de ser um desafio de singela solução, a resolutividade não é impassível, mas adere, sempre, ao perfil idiossincrático do agente público que julga a proposta, de tal modo que a receptividade do ato como sanável dependerá do comportamento menos legalista e tecnocrata do servidor.
Exemplificativamente, se o edital prevê a entrega de determinado documento contábil, que ateste a saúde financeira da licitante e, faltante o aludido documento que deve, pela literalidade do instrumento convocatório, acompanhar a proposta, tudo leva a crer que a proposta tenha de ser desclassificada. Trata-se de uma decisão que tangencia e vai ao encontro do pensamento da filosofia grega de Parmênides, cuja essência não pode mudar, desaguando no imobilismo ontológico.
Entretanto, podem existir, acompanhando a mesmíssima proposta, outros documentos apresentados pela licitante desclassificada que sejam suficientes o bastante para comprovar a sua saúde financeira de maneira ainda mais contundente, havendo, por decorrência, um vício sanável.
No mesmo caso, é possível encontrar dois posicionamentos distintos, a depender, como apontado, da análise de quem julga. Inquestionável, portanto, que, em tal situação, a discricionariedade administrativa encontra largo espaço, uma vez que, claramente, há justificativa para ambas tomadas de decisões. Por um lado, o rigorismo do edital pode ser defendido à risca; por outro, a eficiência e pragmatismo (dentre outros) têm mais valor.
O mesmo ocorre com o inciso II, onde há a previsão normativa de desclassificação das propostas que “não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital”. Ora, em se tratando de licitações cada mais complexas, cuja definição do objeto já é, por si só, uma tarefa árdua para a Administração, a previsão de especificações técnicas pormenorizadas no instrumento convocatório beira a uma quimera, devendo, à luz das normas e metas previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) — cuja utilização no processo licitatório não é facultativa (parte final do artigo 5º) — ser sempre ponderada, arrastando uma sensibilidade quanto à rigidez de suposto desatendimento da proposta às cláusulas previstas no edital.
Na mesma raia, os incisos III e IV apresentam reptos ainda mais desafiantes, porquanto abordam o impreciso significado e alcance da exequibilidade ou inexequibilidade da proposta. De tal modo, o inciso III prevê que serão desclassificadas as propostas que “apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação”, ao passo que o inciso IV preceitua que propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração” serão desclassificadas.
Veja-se que, em um cenário de instabilidade de preços e volúvel inflação, o conteúdo de exequibilidade e inexequibilidade de propostas é um enorme obstáculo a ser ultrapassado pela gestão pública, ainda que o inciso III do artigo 11 tenha por objetivo evitar contratações com preços manifestamente inexequíveis.
Por fim, o inciso V prognostica a desclassificação das propostas que “apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanável”. Tal norma é uma repetição, às avessas, da regra prevista no inciso I, sendo, asseguradamente, inteiramente frívola e despicienda, na medida em que reforça a ideia de que vícios insanáveis são impassíveis de convolação e saneamento.
À guisa de considerações finais, por carrear uma vastíssima abertura interpretativa, o artigo 59 (e seus incisos) protagoniza a constante possibilidade de questionamento do ato praticado perante o Judiciário, o qual, sem adentrar no mérito administrativo propriamente dito, pode, fincado na plausibilidade das justificativas apresentadas pelo licitante prejudicado, entender pela repetição ou saneamento do ato, sobremais se o juízo de convencimento do magistrado desaguar para o saudável consequencialismo carinhosamente previsto na LINDB, evitando burocracias desnecessárias e impertinentes.
Por terminação, ao menos na seara administrativa, tudo não deixa de ser discricionário e, em tal caso, o imobilismo ontológico de Parmênides ainda é robusto. Parece-nos que é tempo de contemplarmos, por outro lado, o pensamento de Heráclito, confiando na permanente e inflexível dinamicidade ínsita às contratações públicas. Definitivamente, o dilema da filosofia grega antiga não deve ser perpetuado.