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Em franca aderência à garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição, em que se oportunizam às partes, seja em processos administrativos ou judiciais, amplos meios de defesa, possibilitando-lhes a utilização de um lenitivo recursal a ser desafiado na hipótese de a decisão ser prejudicial à parte contratada, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos conferiu a possibilidade de interposição de recursos administrativos nas mais variadas hipóteses.
Em sentido genérico, “o recurso administrativo é um meio legal conferido ao particular para exercer direito subjetivo público de promover o reexame do ato administrativo. A interposição do recurso coloca o ato recorrido em estado de pendente. O manejo da impugnação referida pressupõe um interesse em recorrer” [1].
Seguindo o mesmo compasso da sistemática recursal encontrada no inciso I, o inciso II do artigo 165 da Lei nº 14.133/2021 também assegura o manejo do pedido de reconsideração “(…) relativamente a ato do qual não caiba recurso hierárquico”. Eis, na integralidade, a redação do caput do artigo 165, que trata tanto do recurso, como também do pedido de reconsideração:
“Artigo 165 — Dos atos da Administração decorrentes da aplicação desta Lei cabem:
I — recurso, no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data da intimação ou de lavratura da ata, em face de:
a) ato que defira ou indefira pedido de pré-qualificação de interessado ou de inscrição em registro cadastral, sua alteração ou cancelamento;
b) julgamento das propostas;
c) ato de habilitação ou inabilitação de licitante;
d) anulação ou revogação da licitação;
e) extinção do contrato, quando determinada por ato unilateral e escrito da Administração;
II — pedido de reconsideração, no prazo de 03 (três) dias úteis, contado da data de intimação, relativamente a ato do qual não caiba recurso hierárquico”.
A leitura do dispositivo legal acima mencionado pode abrir margens a interpretações díspares e, em certa medida, confusas, sobretudo quando não interpretado como norma geral de licitação, cuja aderência pelos demais entes federados é cogente, a teor do disposto no artigo 22, XXVII, da Constituição Federal Brasileira de 1988.
Muito embora possam ser concretizadas as mais inquietantes distinções entre pedido de consideração e recurso, notório assinalar, primeiramente — e com as devidas escusas pela obviedade —, que os instrumentos não podem ser confundidos. Assim sendo, não existe, por exemplo, a possibilidade de se utilizar pedido de reconsideração em substituição ao adequado e cabível recurso contra a anulação de um certame (artigo 165, I, “d”).
Portanto, existindo recurso próprio, o pedido de reconsideração se torna, tão apenas, mais uma oportunidade deferida ao licitante ou contratado de se insurgir contra a decisão proferida pela Administração Pública (medida autônoma de impugnação de um ato administrativo), não podendo, também, ser confundido com a representação que pode ser feita aos órgãos de controle.
As considerações acima apontadas parecem padecer de uma certa dose de frivolidade, tamanha a precisão da norma jurídica sobre o assunto, sendo a mais simplória interpretação literal suficiente para dissipar qualquer outra espécie de anotação.
Ocorre que não raramente deparamo-nos com casos práticos em que não se faz possível a utilização do recurso previsto em lei. Tais circunstâncias decorrem, quase sempre, da inexistência de uma autoridade superior àquela que proferira a decisão recorrida, não havendo no nível hierárquico administrativo qualquer agente público que possa exercer controle recursal sobre o ato guerreado.
Por consectário, a parte prejudicada tem de se valer, exclusivamente, do pedido de reconsideração, como se recurso fosse, à míngua da impossibilidade prática de manejar o correto e adequado meio processual que lhe deveria ser franqueado, nomeadamente por se tratar de norma geral de licitação.
Tal “modismo” encontrou reforço — e repouso — sobretudo após a edição da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que, insolitamente, não faz qualquer menção à utilização de recurso em face das decisões proferidas nos casos nela rotulados. Por igual, o decreto que a regulamenta (Decreto nº 8.420/2015) também não faz nenhuma menção ao constitucional e fundamental direito de recorrer. Na prática, inexoravelmente a parte prejudicada tem de se valer, para esgotar a via administrativa, do pedido de reconsideração, que, como já exaustivamente mencionado, não é recurso.
Retornando ao plano do regramento inerente às contratações públicas, indene de dúvidas que a Lei nº 14.133/2021 não espaça qualquer precedente para que um ente federativo impossibilite o direito da parte de se rebelar contra determinada decisão que esteja sujeita a recurso, designadamente as decisões a que fazem alusão as alíneas do inciso I do nomeado artigo 165. Por tal razão, são inteiramente ilegais as decisões finais tomadas pelos agentes administrativos que, pragmaticamente, seriam os destinatários das razões recursais.
Conforme já mencionado, essa ilegalidade não é de raridade incomum e, por isso, precisa ser combatida. Todavia, a indagação que subjaz ao caso em concreto, quando evidente a impossibilidade de manejar recurso próprio, perpassa a seara da Administração Pública e, desafortunadamente, deságua no Judiciário, via de regra por meio do mandado de segurança, impetrável quando não mais existente recurso administrativo com efeito suspensivo (artigo 5º, I, da Lei nº 12.016/2009).
Para além, a literalidade do inciso II do artigo 165, quando aborda o pedido de reconsideração, testifica, confessadamente, que deve existir, precedentemente a essa insurgência processual, um recurso próprio, vez que sua utilização somente se concretiza na inexistência de recurso hierárquico. Por decorrência lógica, o pedido de reconsideração igualmente não substitui o cabível recurso hierárquico.
A ambos, o legislador conferiu o mesmo prazo de três dias úteis, atribuindo-lhes efeito suspensivo ope legis (artigo 168), o que significa que nenhuma medida desfavorável ao licitante ou contratado pode ser efetivada quando ainda pendente de julgamento o recurso hierárquico ou mesmo do pedido de reconsideração.
Entretanto, a abertura conferida pelo legislador quanto à oportunização das referidas medidas de insurgência contra as decisões proferidas pela Administração não deságua, necessariamente, na utilização, pela parte prejudicada, de todas elas, reforçando a tese de que a finalização do transcurso da via administrativa é, até certo ponto, um direito puramente potestativo da parte prejudicada, ao menos no que concerne ao manejo do pedido de reconsideração. Isso porque cabe à parte prejudicada ponderar sobre a utilidade e necessidade do pedido de reconsideração, podendo se socorrer do Judiciário mesmo quando ainda possível o seu manuseio, ainda que a ele seja deferido, por expressa disposição normativa, o benfazejo efeito suspensivo.
Esclarecidos esses pontos, algumas conclusões são alcançáveis. A primeira delas alude à natureza jurídica dos recursos em matéria de contratação pública — são normas gerais de licitação, cuja competência para legislar é privativa da União (inteligência do artigo 22, XXVII, da Constituição Federal Brasileira de 1988). Logo, inexiste, para qualquer outro ente federativo, a possibilidade de suprimir o direito recursal previsto na Lei Geral de Licitações.
Por outro lado, o pedido de reconsideração não deve ser qualificado como de natureza jurídica recursal, uma vez que dirigido à mesma autoridade, pleiteando a revisão da decisão anterior por ele mesmo proferida. Na sistemática da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a competência para decidir o recurso é atribuída a uma autoridade hierarquicamente superior àquela que proferiu a decisão recorrida.
Em todos os casos em que repouse ato decisório, a autoridade superior, seja julgando o recurso administrativo, seja apreciando o pedido de reconsideração, deverá observar as disposições contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), não se podendo valer de “valores jurídicos abstratos sem que sejam calculadas as consequências práticas da decisão” (artigo 20, caput).
Aos recursos administrativos e pedidos de reconsideração, é referendável o princípio da adequação, sob pena de tergiversação do desiderato normativo. Em outras palavras, só reconsidera quem já julgou.
[1] HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei nº 14.133/21. 2 ed. Salvador: Jupodivm. 2022, p. 869.