Baixe o arquivo em .pdf clicando aqui
Muito embora futurosa em múltiplos segmentos, a Lei nº 14.133/2021 pressagia, em vários de seus tópicos, uma confusão terminológica para sua possível concretização prática. Quase sempre nas sobrancelhas de princípios, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos inviabiliza a confecção de um processo licitatório com atendimento pleno a todos os seus objetivos. Tais dificuldades pragmáticas, de natureza normativo-aplicativa, costumam se transformar em futuros problemas de responsabilização para os agentes que atuam no processo de contratação pública.
Leiam-se, quanto a essa exemplificação, os principais objetivos traçados no artigo 11 da nova lei, estabelecendo quatro finalidades essenciais para o processo licitatório, as quais podem ser sintetizadas pela busca do resultado de contratação mais vantajoso (1), pela garantia de tratamento isonômico associada à justa competição entre os licitantes (2), pela aspiração às contratações exequíveis, sem sobrepreço ou superfaturamento (3) e pelo incentivo à inovação e ao desenvolvimento nacional sustentável (4).
Apenas aparentemente conciliáveis, esses princípios tendem a não se concretizarem em sua totalidade, à medida que visam ao encerramento linguístico-conceitual de determinados valores, que, em sua consecução prática possível, expressam ideias muito mais complexas.
Isoladamente, o processo licitatório já não é, sob os auspícios da nova lei, uma simples fase da contratação pública, mas um séquito procedimental com reflexivo começo, burocrático meio e contemplável finalização. Cumprir os requisitos do processo licitatório perpassa pelas questões de um singelo planejamento, bem assim pela sanatória de possíveis irregularidades.
Como primeira finalidade (artigo 11, I), o processo licitatório tem por objetivo “assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto”. Quando se refere à vantajosidade, não necessariamente o legislador vinculou-se ao preço, estabelecendo uma conexão da relação custo-benefício, a qual, em certa medida, é extremamente subjetiva.
É que essa relação caminha pelo também elusivo e inconstante conceito de economicidade, princípio igualmente catalogado no artigo 5º do mesmo diploma normativo, sendo necessário, quando da realização do planejamento e execução do processo licitatório, diligenciar, esclarecer e bem justificar os motivos pelos quais as decisões são mais vantajosas para a Administração Pública.
Ainda quanto ao inciso I do artigo 11 da Lei nº 14.133/2021, o legislador caminha no sentido de que a contratação mais vantajosa para a Administração é uma decorrência do ciclo de vida do objeto. Nesse compasso, a justificativa seria, aparentemente, mais precisa, porque, possuindo o objeto do contrato um ciclo de vida mais duradouro, a contratação tenderia a ser mais vantajosa. Ocorre que, mesmo nessa hipótese, residem seriíssimos obstáculos, cujos predições são inauguradas logo no subsequente inciso II.
A segunda finalidade (art. 11, II) é expressa pelo objetivo de “assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição”. Além de visar à garantia de um tratamento formal e materialmente igualitário a todos os participantes do certame, esse fim se conecta com o anterior — da busca pelo resultado mais vantajoso —, porquanto pretende resguardar a necessária competitividade na licitação, ainda na fase pré-contratual, é dizer, no processo licitatório.
Pelo menos em tese, ao visar à competitividade, o legislador ambicionou ampliar as possibilidades quantitativas e qualitativas das propostas, tanto sob o aspecto horizontal, quanto sob o aspecto vertical. No aspecto horizontal, esse objetivo leva à eleição justificada de critérios de habilitação que excluam o mínimo possível de pretendentes, a exemplo da vedação geral de discriminação em razão da procedência nacional dos licitantes. Já na perspectiva vertical, esse objetivo estabelece que as escolhas administrativas ponderem, profundamente, os requisitos de qualificação técnica e econômica, sob pena de comprometimento da vantajosidade da proposta, jamais restrita ao caráter econômico.
Intrínseca aos objetivos anteriores, embora já abstratamente provocadora, a terceira finalidade (artigo 11, III) foi circunstanciada pela necessidade de “evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos”. Apesar de a nova lei também posicionar tal objetivo na posterior fase de execução dos contratos, sua aplicação prática depende de uma perfeita — e muitas vezes improvável – avaliação prévia e prognóstica sobre os detalhes de cada etapa da execução contratual. Sob a regência desse escopo, uma proposta — e respectiva projeção de resultados — que, na fase licitatória, havia sido considerada a mais vantajosa pode vir a ser rechaçada, pelos órgãos de controle, sob a pecha de “superfaturada”, condição que passa a adquirir independentemente de não ter havido sobrepreço.
A própria Administração, muitas vezes limitada por seu tímido contingente de servidores com conhecimentos específicos, acaba por tomar decisões questionáveis, já no curso da execução dos contratos, que se mostram contraditórias com suas posturas anteriores, justamente por não terem sido capazes de avaliar, por exemplo, que, no curso do contrato, seria inevitável o reequilíbrio econômico-financeiro dos valores inicialmente estipulados e aceitos. A inexistência de equivalência entre sobrepreço e consequente superfaturamento, em que pese saltar aos olhos, intimida a concessão do direito ao reequilíbrio.
É bem verdade que a nova lei também buscou subministrar a Administração com instrumentos normativos que, preliminarmente, permitiriam uma melhor realização dos juízos de prognose inerentes à seleção do resultado contratual mais vantajoso e compatível com preços justos e economicamente equilibrados quando da execução do pacto. Exemplo pode ser encontrado no artigo 22 do mencionado diploma, que faculta à Administração Pública a inclusão de matriz de riscos, “hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado”. Em todo caso, operacionalizar instrumentos normativos tão complexos sempre retorna às limitações estruturais do Poder Público num país de dimensão continental, como é o caso do Brasil.
São situações de manifesta conflituosidade. Retrato disso reside na quarta e última finalidade elencada pela Lei nº 14.133/2021, segundo a qual o processo licitatório deve “incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável” (art. 11, IV). Os problemas conceituais desse dispositivo são, por singela leitura, antecipáveis. Ora, como determinar o que significará o desenvolvimento nacional sustentável na realização de licitações no multifacetado território nacional? Como compatibilizar a busca por inovação com a competitividade e com a igualdade entre os licitantes?
Ainda que decorrência de zelosa avaliação sistemática da nova lei, o legislador fez menção parcial a “bens e serviços” que seriam considerados resultados de ações promotoras de “desenvolvimento e inovação tecnológica”, no § 2º, do artigo 26, relegando, contudo, uma definição mais precisa a eventual e hipotético “regulamento do Poder Executivo federal”. Enumerar, nos incisos I e II, do caput, do mesmo art. 26, alguns bens e serviços em relação aos quais poderia haver margem de preferência (“bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras” e “bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento”) não equaciona o problema teorético trazido com a “busca pelo desenvolvimento nacional sustentável”.
Não é temerário considerar que o desenvolvimento nacional sustentável pode ganhar significado quando associado a outros princípios fundamentais de toda e qualquer contratação pública, tal como a expressa garantia constitucional ao equilíbrio econômico-financeiro. Sob tal perspectiva, afiançar bons resultados para ambas as partes, Administração Pública e contratado, promove, igualmente, o objetivo do desenvolvimento nacional sustentável, nomeadamente quando a execução do contrato considera seus transcendentes efeitos econômicos, sociais e ambientais.
Todos esses objetivos carreiam uma sombra de responsabilidades refletidas por hercúleas tarefas a cargo não apenas da Administração Pública brasileira, mas também dos demais atores envolvidos e interessados nesse intricado processo de contratação pública. Entre essas tarefas está, sem dúvidas, a busca incessante pela diminuição da conflituosidade na consecução prática das pretensões trazidas pelo artigo 11, da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. O desafio está posto e o atendimento à necessidade diária de soluções inteligentes e inovadoras é apenas o primeiro passo a ser dado para superá-lo.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.
Raíi Sampaio é mestre em Direito Público, advogado militante na área do Direito Administrativo e sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.