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Antes do advento da Lei nº 14.133/2021, a figura do agente de contratação era completamente desconhecida no contexto da contratação pública brasileira. Como toda inovação, sobretudo no mundo jurídico, há críticas e aclamações, as quais devem ser, pormenorizadamente, analisadas. Mas, de logo, o novo instituto já aparenta semelhanças com o livro “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez (Gabo).
O inciso LX do artigo 6º da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz o conceito do agente de contratação: “É pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”.
No mesmo sentido, o caput do artigo 8º reproduz o texto do inciso LX do artigo 6º e seus parágrafos complementam o regime jurídico dessa nova figura da fase licitatória, que, de acordo com o parágrafo primeiro, “será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe”.
Para Justen Marçal Filho [1], as atribuições do agente de contratação não se limitam ao disposto no artigo 6º, IX, da Lei n° 14.133/2021. Isso porque “a Lei se vale da expressão Administração para indicar o órgão de contratação. Assim se passa, por exemplo, no artigo 61, que prevê a negociação de condição mais vantajosa com o primeiro colocado”.
Por outro lado, insta salientar que, em relação à fase de contratação pública, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos aparta, de forma bastante clara, a fase do processo licitatório, a qual, como processo, possui começo, meio e fim. Nesse sentido, o agente de contratação é um agente público que só — e somente só — pode atuar nesta específica fase de todo o processo de contratação pública (em seu sentido mais amplo).
Ainda no mesmo compasso, é importante destacar que a lei também conceitua o agente público (artigo 6º, V), como sendo o “indivíduo que, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública”. Logo, o agente de contratação não é um simples agente público.
Utilizando um caráter excludente, uma autoridade é necessariamente um agente público, mas que, por força de expressa disposição da norma, possui poder de decisão e, na mesma sequência, agente de contratação não é autoridade, sendo, contudo, um agente público com qualificação específica, cujas atribuições encontram-se definidas e delimitadas pela norma.
Ao que se percebe, o propósito legislativo, ao menos no que concerne à criação do agente de contratação, caminha no sentido de oportunizar à Administração Pública uma maior celeridade no processo licitatório. Desde já, destaque-se, contudo, que o agente de contratação figura, por expressa disposição normativa, exclusivamente no processo licitatório. Logo, o agente de contratação não é fiscal ou gestor do contrato, eis que estes somente existem quando já perfectibilizada a relação contratual.
Por dedução, o agente de contratação também não pode ser simplesmente confundido com nenhum dos servidores que normalmente atua no processo licitatório. É dizer, não pode ser resumido com o pregoeiro, com membros da equipe de apoio, com os integrantes das comissões permanentes de licitações, entre outros. E assim subjaz a inquietação: quem é o tal agente de contratação?
Bem, a resposta a esse questionamento não é das mais simples. Embora o texto da lei se refira a um conjunto de atividades a ser por ele desenvolvida, tudo leva a crer que, na prática, o agente de contratação seria uma espécie de “juiz Hércules”, dotado de consistentes conhecimentos acerca de absolutamente todas as fases do processo licitatório.
Justamente na fase mais complexa da contratação pública — a fase licitatória —, ao novel agente de contratação é imposta uma espécie de presunção iuris tantum de que sua responsabilidade é “individual” pelos atos que praticar, a não ser que comprove ter sido induzido a erro pela atuação de sua equipe de apoio, já que ele “responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe” (artigo 8º, § 1º, Lei nº 14.133/2021).
A leitura do §1º do artigo 8º traz à mente o clima enredado pelo Gabo em seu “Crônica de uma morte anunciada”. Anunciada desde as primeiras páginas do livro, a morte de Santiago Nasar não era novidade no contexto dos personagens da obra, tampouco sob a ótica do leitor. A responsabilidade “individual” do agente de contratação pública, prenunciada no início da Lei nº 14.133/2021, parece delinear um trágico destino dessa nova figura, preparando o terreno para a institucionalização de um “bode expiatório” no campo das competições públicas.
A presunção legal de que a responsabilidade por todos os atos praticados pelo agente de contratação é individual parece enxergar nos procedimentos licitatórios um terreno fértil para a pureza de intenções, não o campo de batalha entre interesses políticos, econômicos e outros, que efetivamente constitui essa etapa da contratação pública na prática hodierna.
Além disso, a lista de atribuições desse agente, que somente poderia ser suportada por um “agente Hércules” ou um “agente Atlas”, vem confirmar o destino trágico desse novo personagem das licitações. Talvez por antecipar esse destino — ou para conferir à nova lei uma pitada de sarcasmo —, o legislador também criou, no § 2º, do mesmo artigo 8º, uma “comissão de contratação”, que substituirá o agente de contratação quando o objeto da licitação for constituído por “bens ou serviços especiais”.
Pragmaticamente, impossível um servidor público, designado pela autoridade competente, ser extremo entendedor de tudo que se processa em um complexo processo de licitação, independentemente do objeto licitado. É que se faz impossível alguém ter amplo domínio sobre pesquisa de preços, balanços contábeis, compreender a natureza técnica do objeto licitado, avaliar planilhas e, por fim, opinar sobre a viabilidade final do processo licitatório, inclusive avaliando a possibilidade de homologação ou não do certame. Bem, é isso que traduz, fidedignamente, a lei.
Muito embora a nova figura do agente de contratação tenha sido criada para ser a regra geral das licitações baseadas na Lei nº 14.133/2021, a comissão de contratação se afigura instituto com mais elementos jurídicos para lidar com a realidade fática do país no entorno das contratações públicas, em especial na fase licitatória.
Por fomentar uma maior controlabilidade prévia das decisões, ao mesmo tempo em que permite ser composta por integrantes com conhecimentos complementares, a comissão de contratação potencializa decisões mais instruídas e reparte responsabilidades de maneira equânime, independentemente da regulamentação que lhe vier a ser conferida nos termos do §3º do artigo 8º da Lei 14.133/2021.
Assim, à falta de um “agente Hércules” ou de um “agente Atlas” — que carrega o mundo sobre os ombros — no mundo real, a figura do agente de contratações parece ter seu trágico destino anunciado pelos próprios dispositivos que o instituem, quando se considera a cultura de licitações já incrustada nos bastidores da realidade da Administração Pública brasileira.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. Lei nº 14.133/2021. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021, p. 215.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.
Raíi Paiva é mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), advogado no escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e sócio Efetivo do Instituto de Direito Administrativo de Alagoas (IDAA).