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De modo vanguardista, o Tribunal de Contas da União (TCU), ao se deparar com potenciais situações de fraude à licitação, deliberou (no Acórdão nº 495/2013-Plenário; TC 015.452/2011-5; relator: ministro Raimundo Carreiro; Sessão de 13/3/2013) no sentido de recomendar ao então Ministério do Planejamento do Orçamento e Gestão (MPOG) o desenvolvimento de mecanismo, no âmbito do Sistema de Cadastro de Fornecedores (Sicaf) , capaz de proceder ao cruzamento de dados de sócios e/ou de administradores de empresas que tenham sido declaradas inidôneas e de empresas fundadas pelas mesmas pessoas, ou por parentes, até o terceiro grau, que demonstre a intenção de participar de futuras licitações, encontrando-se tal recomendação implementada desde 2015, intitulada como Provável Ocorrência Impeditiva Indireta.
Em que pese o aludido julgado haver sido prolatado há quase dez anos, não foi editada qualquer Instrução Normativa específica sobre o registro no Sicaf a título de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta. Quais as hipóteses? Quais os efeitos? Qual o procedimento a ser adotado para tal registro? Como a administração deve se comportar diante de tal registro na fase de licitação? E na fase de execução contratual? Tais indagações sinalizam relevante insegurança jurídica (que será devidamente ilustrada no decorrer desse artigo) para os licitantes, como também para os contratados.
Diante da inexistência de Instrução Normativa específica, o tema encontra respaldo na Instrução Normativa MPOG nº 03/2018, designadamente em dois dispositivos, a saber:
“Procedimento para habilitação de fornecedor
[…]
Art. 29. Caso conste na Consulta de Situação do Fornecedor a existência de Ocorrências Impeditivas Indiretas, o gestor deverá diligenciar para verificar se houve fraude por parte das empresas apontadas no Relatório de Ocorrências Impeditivas Indiretas.
§ 1º. A tentativa de burla pode ser verificada por meio dos vínculos societários, linhas de fornecimento similares, dentre outros.
§ 2º. É necessária a convocação do fornecedor para manifestação previamente à sua desclassificação.
§ 3º. O disposto neste artigo deve ser observado quando da emissão de nota de empenho, contratação e pagamento, previstos nos arts. 28 e 29.
Emissão de nota de empenho, contratação e pagamento
Art. 30. Previamente à emissão de nota de empenho, à contratação e a cada pagamento, a Administração deverá realizar consulta ao Sicaf para identificar possível suspensão temporária de participação em licitação, no âmbito do órgão ou entidade, proibição de contratar com o Poder Público, bem como ocorrências impeditivas indiretas, observado o disposto no art. 29.
Parágrafo único. Nos casos em que houver necessidade de assinatura do instrumento de contrato, e o fornecedor não estiver inscrito no Sicaf, este deverá proceder ao seu cadastramento, sem ônus, antes da contratação.”
Desafortunadamente, a sobredita Instrução Normativa, que estabelece o regramento geral do funcionamento do Sicaf, não disciplina as hipóteses, os efeitos, o procedimento e inúmeras outras indagações pertinentes acerca do Registro de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta.
Para suprir, minimamente, essa insuficiência normativa, consta do Portal de Compras Eletrônico do Governo Federal em sede de Respostas a Perguntas Frequentes [1]:
“27 – O que são as ‘Ocorrências Impeditivas Indiretas’ registradas no Sicaf?
As ocorrências impeditivas indiretas registradas no Sicaf são resultado de cruzamento de informações, sobre o quadro societário das empresas que visa evitar possível tentativa de burla à penalidade de declaração de inidoneidade, impedimento de contratar ou licitar com a Administração Pública ou suspensão temporária de licitar com a Administração, por meio da utilização de outra sociedade empresarial, pertencente aos mesmos sócios ou cônjuges de sócios e que atue na mesma área, em atendimento a recomendações do Tribunal de Contas da União (Acórdão 2.115/2015).
28 – É possível retirar o alerta de ocorrência impeditiva?
O alerta só deixa de aparecer quando o prazo das ocorrências do fornecedor vinculado terminar, ainda que não tenha mais vínculo societário com a empresa.
29 – A ocorrência impeditiva é causa de restrição a participação em licitações?
Somente o alerta de ocorrências indiretas não tem o condão por si só de impedir a participação em licitações, devendo o pregoeiro analisar caso a caso e garantir ao fornecedor o direito de defesa para comprovação de que não há fraude.
[…]
31 – Para a emissão de nota de empenho e contratação deverá ser realizada consulta ao Sicaf?
Sim. Previamente à emissão de nota de empenho e à contratação, a administração realizará consulta ao Sicaf para identificar possível proibição de contratar com o Poder Público, bem como se há ocorrências indiretas. A administração também realizará consulta ao Sicaf a cada pagamento a fornecedor, a fim de verificar a manutenção das condições de habilitação.”
Sucede que o registro de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta, ainda que possua o louvável desígnio de servir de instrumento de combate à fraude, viola, no nosso sentir, os postulados do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e, ainda, da presunção de inocência, insculpidos no artigo 5º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição Federal.
Nesse contexto, em sendo identificado provável indício de fraude, sustentamos a necessidade de o interessado ser notificado para a apresentação de uma espécie de Defesa Prévia. É dizer, antes de ser registrada, no Sicaf, a existência de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta, ao interessado deve ser assegurado acesso à hipótese de indício de fraude vislumbrada pela administração, bem assim assegurada a oportunidade de serem prestados esclarecimentos, os quais podem ser capazes, em tese, de infirmar o registro indiciário em questão.
Por oportuno, cumpre anotar que, até o presente momento, contra o interessado somente é imputada a existência de mero indício (leia-se, também, suspeita) de virtual fraude. Não há, portanto, acusação formal (concretamente circunstanciada) de fraude.
Na hipótese de a Defesa Prévia não ser acolhida, apoiamos a necessidade de a administração pública instaurar procedimento próprio, promovendo acusação formal acerca da Provável Ocorrência Impeditiva Indireta para que o interessado possa, em sua plenitude, exercer seu direito de defesa.
Nessa senda, o registro no Sicaf de Provável Ocorrência Impeditiva Indiretadeve ser interpretado como um alerta, “o que exigirá da equipe de licitação a realização de diligências para investigar se a constituição da pessoa jurídica teve como objetivo burlar os efeitos da sanção aplicada a outra empresa com quadro societário comum” (TCU – Acórdão 2914/2019-Plenário; Processo nº 013.390/2017-1; relator: ministro Benjamin Zymler; Sessão de 4/12/2019).
Durante a fase de licitação, a suspensão do procedimento de contratação para a análise de eventual situação de inabilitação é perfeitamente possível e adequada, conforme disposto no artigo 43, §3º, da Lei nº 8.666/1993, e nos artigos 42, § 2º e 59, § 2º, da Lei nº 14.133/2021. Assim sendo, verificando a administração alerta de suspeita de fraude, o licitante deverá ser notificado para a apresentação de Defesa Prévia. Nesta fase, não há de se falar em prejuízo para o licitante.
Todavia, na fase de execução contratual, o registro de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta não deve justificar a suspensão de pagamento por serviços prestados, atestados e empenhados, conforme exegese do artigo 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993, cuja essência normativa foi reproduzida no artigo 149 da Lei nº 14.133/2021, que veda o enriquecimento sem causa por parte da Administração.
Ademais, a suspensão de pagamento por serviços prestados, atestados e empenhados possui o potencial de comprometer o fluxo financeiro do contratado, inviabilizando, por vezes, o pagamento de salários, insumos, tributos e outras despesas inerentes à própria execução do contrato firmado com a administração.
Diferentemente do que ocorre na fase de licitação, na execução contratual, eventual interpretação equivocada (transfigurando suspeita em precitada constatação de fraude, o que viola a garantia constitucional da presunção de inocência) sobre o registro de Provável Ocorrência de Impeditiva Indiretapode ocasionar prejuízos ao contratado.
Para que o contratado não seja, portanto, surpreendido com o aludido registro de Provável Ocorrência Impeditiva Indireta e, consequentemente, surpreendido com suspensão de pagamento por serviços prestados, atestados e empenhados, devem ser observados os postulados do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e, ainda, da presunção de inocência, insculpidos no artigo 5º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição Federal, sob pena de completa mitigação de tais princípios.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).
Raphael Guimarães é advogado e sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados, com larga experiência na área de contratação pública.