Licitação, improbidade administrativa e advocacia pública municipal

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Por Guilherme Carvalho e Fabíola Marquetti Sanches Rahim

Significativa parte das ações por ato de improbidade administrativa decorre da prática de procedimentos realizados no decorrer dos processos de contratação pública. De tal modo, a interpretação pelo órgão de controle externo — invariavelmente, o Ministério Público, cuja competência para a propositura da respectiva ação é inconteste — perpassa, não raramente, pela análise jurídica realizada pelo órgão de assessoramento jurídico.

A temática envolvendo a emissão de parecer jurídico pelo órgão de assessoramento jurídico (terminologia utilizada pela Lei nº 14.133/2021) sempre foi objeto de contundentes polêmicas, notadamente porque a autoridade que autoriza e homologa a licitação tende a aderir às recomendações constantes no dictamen.

No contexto da Lei nº 8.666/1993, a opinião jurídica, é dizer, o papel exercido pelo órgão de assessoramento jurídico (parágrafo único do artigo 38), embora indispensável, não corresponde à relevância emanada do artigo 53 da Lei nº 14.133/2021. À vista disso, o plexo de atribuições deferidas pela Nova Lei ao órgão de assessoramento jurídico segue, tal-qualmente, um encadeamento de maiores responsabilidades.

No ensejo da promulgação da Lei nº 14.230/2021, a qual altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa, a redação original previu a exclusividade para o manejo da respectiva ação ao Ministério Público. Dito de outro modo, à Fazenda Pública não fora deferida legitimidade para manusear o respectivo lenitivo processual.

Em virtude do monopólio quanto à legitimidade ativa conferida ao Ministério Público, ao STF(Supremo Tribunal Federal) foram dirigidas duas ações diretas de inconstitucionalidade: ADI 7.042, proposta pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), bem como a ADI 7.043, de autoria da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), tendo por objeto, em seu conjunto, os artigos 17, caput e §§ 14 e 20, e 17-B, da Lei nº 8.429/1992, alterados e incluídos pelo artigo 2º da Lei nº 14.230/2021, e os artigos 3º e 4º, X, da referida Lei nº 14.230/2021.

Exercendo controle concentrado de constitucionalidade, o STF firmou entendimento — para o quanto importa para o presente texto[1] — no sentido de restabelecer a legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa e para a celebração de acordos de não persecução cível.

Evidentemente, a Corte Suprema fundamentou o julgado lastreado em disposições constitucionais relativas à matéria, normativos que guardam plena compatibilidade com os autores das referidas ADIs, Anafe e Anape. Isso porque não há qualquer traço constitucional que albergue menção à estrutura da Advocacia Pública nos Municípios, tema que já foi objeto de livro de nossa autoria[2].

A Constituição Federal de 1988 não aborda a Advocacia Pública no âmbito dos municípios, versando, apenas, sobre a seara federal (artigo 131), bem assim estadual e distrital (artigo 132), pelo que nem todos os municípios, pelas mais variadas razões, possuem procuradorias estruturadas em carreira.

A Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) utiliza o termo “órgão de assessoramento jurídico”, sem expressar, pontualmente, nomenclaturas que traduzam atribuições inerentes, com exclusividade, à Advocacia Pública.

De tal modo, é imprescindível distinguir, à luz da interpretação conferida pelo STF quando do julgamento das mencionadas ADIs, os municípios que possuem procuradorias com estrutura de Advocacia Pública (conforme preveem os artigos 131 e 132 da CF/1988), impondo uma comparação à União, estados e Distrito Federal, daqueles que se utilizam de advogados contratados por livre nomeação e exoneração pelos respectivos agentes públicos que exercem, com tempo rigidamente definido, o mandato eletivo.

Advogados ou escritórios privados, sob qualquer viés, não se igualam ao conceito de Advocacia Pública, não havendo qualquer margem para que a legitimidade ativa para proposição de ação por atos de improbidade administrativa seja deferida à Fazenda Pública Municipal em que inexiste Advocacia Pública. Em curtas palavras, a Fazenda Pública somente goza de legitimidade ativa se, e somente se, for dotada de órgão que possua estrutura de carreira de Advocacia Pública, cuja autonomia funcional assegure o patrocínio da ação de acordo com seus convencimentos técnicos-jurídicos e não permita situações em que a mudança do gestor ou do detentor de mandato eletivo influa substancialmente na condução do processo.

Por outro lado, não deve remanescer qualquer equivocação entre os termos Fazenda Pública, Advocacia Pública e órgão de assessoramento jurídico. Ao que tudo indica, o conceito de Fazenda Pública, para os fins a que se referem os princípios encartados no caput do artigo 37 da Carta Magna de 1988, não se desfaz pela simples privação de Advocacia Pública, cuja obrigatoriedade inexiste para os municípios.

Assim sendo, o conceito de órgão de assessoramento jurídico, nos âmbitos federal, estadual e distrital, confunde-se com Advocacia Pública e suas respectivas procuradorias. Porém, na esfera dos municípios, o órgão de assessoramento jurídico, a que se refere a Lei nº 14.133/2021, poderá ou não ser identificado com Advocacia Pública, a depender, por óbvio, da existência de procuradorias estruturadas em carreiras, com provimento dos cargos (advogado público) na conformidade da norma constitucional, isto é, inciso II do artigo 37.

Por certo, a interpretação conferida pela Corte Suprema, adjudicando legitimidade concorrente e disjuntiva entre Ministério Público e Fazenda Pública para o manuseio de ações de improbidade administrativa e celebração de acordo de não persecução cível requer, necessariamente, que haja, em se tratando de Fazenda Pública Municipal, verdadeira Advocacia Pública, estruturada em órgão, formada por agentes públicos estáveis e que defendam os interesses primários da Fazenda Pública lesada, os quais, nem sempre, confundem-se com os interesses secundários do gestor que, transitoriamente, está no exercício da função política.

[1] O acórdão aborda outros temas, como a obrigatoriedade de defesa judicial do agente público pela assessoria jurídica.

[2] FERRAZ, Sergio; CARVALHO, Guilherme. Advocacia Pública Municipal: soluções estruturantes proporcionais. Salvador: Juspodivm. 2021.


 é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração, sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

 é pós-graduada em Regime Próprio de Previdência e em Direito Eleitoral, ex-promotora de Justiça do Mato Grosso, procuradora do Estado de Mato Grosso do Sul e procuradora-geral do Estado de Mato Grosso do Sul.