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A aplicação de penalidades em matéria de contratações públicas é sempre um tema complexo. Seja por exigir o fiel cumprimento aos princípios constitucionais que irradiam o processo administrativo, seja pela necessidade de se observar os princípios e as formalidades específicos do regime jurídico-administrativo, punir contratados exige uma série de cuidados. Ainda mais quando as sanções inviabilizam sua atividade econômica.
Logo, ao aplicar a penalidade, tem a administração pública, necessariamente, que proceder à abertura do devido processo administrativo, com direito ao contraditório, a mais ampla defesa e as demais garantias inerentes ao direito administrativo sancionador. Ao mesmo tempo, deve-se conferir ao apenado a possibilidade de reverter a penalidade sugerida pela administração e, inclusive, de substituí-la por outra mais branda, na conformidade da norma prevista no artigo 151, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Ocorre que, na prática, as penalidades não são impostas apenas em decorrência de alguma das tipificações previstas no artigo 156, da Lei nº 14.133/2021. Há, dentre outras, a possibilidade de a empresa ser apenada com base em decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) e, mais importante para o presente escrito, por meio das sanções a que se referem o artigo 5º da Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013).
Promovendo um conflito entre sistemas normativos, a Lei Anticorrupção criou um rito próprio e diferenciado, que não garante ao apenado os mesmos direitos procedimentais e de defesa que já constavam na Lei nº 8.666/1993, previstos também pela Lei nº 14.133/2021. O conflito sistêmico-normativo instaurado se anunciava com a simplória redação do artigo 30, da Lei nº 12.846/2013, que não trouxe uma “cláusula de subsidiariedade” com referência à aplicação de outro diploma preocupado com as garantias incidentes ao direito sancionador, como a Lei nº 8.666/1993. A título de exemplo, a Lei Anticorrupção não oportuniza o direito ao recurso.
O já revogado Decreto nº 8.420/2015 perdeu a oportunidade de dar fim aos conflitos normativos criados pelo legislador nacional quando contemplou, tão apenas, o pedido de reconsideração, em seu artigo 11. Contudo, pelas mais eloquentes evidências, a reconsideração é instituto diverso do direito de recorrer.
Na seara federal, impera, para a União, a necessidade de uma orientação mais ampla, dócil e submissa ao texto constitucional, com a possibilidade de recurso administrativo decorrente da decisão sancionatória. Dito de outro modo, o mero pedido de reconsideração previsto na normativa federal não é deferente ao constituinte originário e, portanto, claramente inconstitucional.
Em 30 de março de 2021, essas dificuldades de aplicação dos paralelos sistemas penalizadores, instituídos pela Lei Anticorrupção e pela legislação de licitações, foram parcialmente analisadas em Mandado de Segurança (nº 35.435/DF) à Suprema Corte, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. In casu, tratava-se da possibilidade de o TCU aplicar à impetrante a pena de inidoneidade de contratar com a administração, com base no artigo 46, da Lei nº 8.443/1992, sem impedimento de acordo de leniência anteriormente firmado entre a apenada, a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
O voto do relator, condutor da unanimidade, destacou que “A coexistência de múltiplos regimes de leniência requer um esforço normativo de alinhamento dos incentivos premiais dos sistemas e de criação de mecanismos de cooperação entre as agências responsáveis pelo enforcement das legislações”, referindo-se, indiretamente, às penalidades instituídas pela Lei nº 8.666/1993, pela Lei nº 12.846/2013 e pela Lei nº 8.443/1992, que foram objeto de acordo.
A denotar a complexidade da aplicação dos diversos sistemas de apenamento administrativo, o relator considerou que “a partir de uma interpretação sistemática da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, é possível compreender que o diploma instituiu verdadeiro regime duplo de responsabilização das pessoas jurídicas”. Na conclusão do julgado, a 2ª Turma da Corte entendeu que a aplicação de inidoneidade à empresa impetrante, que havia firmado acordo de leniência baseado na Lei Anticorrupção, violaria o princípio constitucional da segurança jurídica.
Apesar da pontual manifestação da Suprema Corte sobre os efeitos de acordos de leniência, muitas questões permanecem em aberto, sem uma regulamentação adequada. Nesse contexto, mais uma vez, o Poder Executivo pôde melhorar os procedimentos de aplicação de penalidade da Lei Anticorrupção por meio do novo Decreto regulamentador nº 11.129/2022. Entretanto, limitou-se à referência indireta e contraditória a “recurso cabível”, em seu artigo 61, ao tempo que, em seus artigos 15 e 16, não menciona a possibilidade de recurso, tão somente do pedido de reconsideração, estabelecendo como exclusivo o procedimento de aplicação das penalidades previso em seu Capítulo II.
Além do mais, a Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 159, assevera, textualmente, que, se a sanção praticada no curso de um processo de contratação pública também se encaixar como ato tipificado como lesivo previsto na Lei nº 12.846/2013, o trâmite procedimental será o adotado por esta normativa:
“Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.”
Dito de outro modo, havendo a prática de qualquer dos tipos previstos nos incisos do artigo 5º, da Lei nº 12.846/2013, o rito adotado será o desta lei e não o da Lei nº 14.133/2021.
Longe de fornecer a segurança jurídica almejada pelo Constituinte e pelo Supremo Tribunal Federal, o legislador terminou por redundar em imprecisão ao fazer referência ao “rito procedimental” adotado pela Lei Anticorrupção. Caminhando no mesmo sentido do legislador, o Poder Executivo não privilegiou a segurança jurídica, face à inexistência de menção à possibilidade de interposição de recursos no artigo 15, do Decreto nº 11.129/2022, a par da redação dada ao artigo 16 que parece impor a aplicação exclusiva do “rito procedimental previsto neste Capítulo”.
Em outras palavras, todas as vezes em que a administração aplicar as penas do artigo 5º, da Lei Anticorrupção, inclusive os que também são capitulados pela Lei nº 14.133/2021, o apenado não terá direito de recorrer, somente direito a pedido de reconsideração.
Pode-se dizer que, mediante ato complexo conjunto, o legislador e o Poder Executivo, no exercício do seu poder regulamentador, deram fim ao conflito formal entre ambos os sistemas penalizadores. Contudo, sob o aspecto material, das garantias constitucionais dos apenados, o conflito entre os sistemas permanece. Basta relembrar que a própria Lei nº 14.133/2021 determina, em seu artigo 5º, a obediência aos princípios da igualdade, da segurança jurídica e da proporcionalidade, materialmente incompatíveis com a supressão da faculdade de recorrer.
Portanto, ainda cabe ao Poder Judiciário a árdua tarefa de compatibilizar a aplicação do procedimento penalizador da Lei Anticorrupção, agora conjugada com o artigo 159, da Lei nº 14.133/2021. Enquanto isso não acontece, os contratados pela administração sofrerão com a insegurança jurídica e com o constante risco de ter suas atividades econômicas desproporcionalmente limitadas pela impossibilidade de recorrer de penalidades.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).
Raíi Sampaio de Paiva é mestre em Direito Público, pós-graduando em cibersegurança e governança de dados, pesquisador e advogado no escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.