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O fenômeno inflacionário derrui a lógica da previsibilidade dos preços de mercado. Desde a criação do Plano Real, ainda na década de 90, o enfrentamento da inflação tem se mostrado — sob a influência dos mais variados fatores — uma atividade menos traumática.
Ocorre que, ainda que não mais vivenciemos um alarmante quadro inflacionário, com completa assimetria de preços e hercúlea dificuldade de atingimento do preço médio de mercado, fatores macroeconômicos, alheios à vontade das partes contratantes, contribuem para desequilibrar os contornos das avenças, inclusive quando uma das partes é a Administração Pública.
Em se tratando de contratos de natureza privada, em que não há, sob qualquer ótica, a presença do poder público, o atingimento de um acordo de vontades, tendente a equilibrar o contrato, forte na cláusula geral da rebus sic stantibus, não é tarefa incólume de percalços, não sendo incomum a implantação de uma solução casuística e apriorística, concedida por um terceiro, via de regra pelo Poder Judiciário.
Logo se percebe que reequilibrar contratos pressupõe um exercício de tirocínio sobre o proporcional, tangenciando uma pretendida razoabilidade, muito embora nem sempre essa razoabilidade seja encontrável na solução proferida ao caso em concreto. Cria-se, portanto, o ideário de que o terceiro carrega um critério de ponderação maior que o das próprias partes, o que nem sempre é uma premissa completamente verdadeira.
Para a Administração Pública, a deliberação sobre o reequilíbrio é ainda mais complexa, em decorrência, principalmente, de uma suposta supremacia do interesse público sobre o privado e, mais erroneamente ainda, sobre o fetiche de que o interesse público é indisponível. Ledos enganos, que merecem ser ultrapassados.
O gestor público, normalmente por receio do inconsiderado controle externo, tem preferência pela negação, mesmo que inclementemente cônscio de que o reequilíbrio não só é devido, como também imprescindível. A negativa do pleito proposto pela parte lesada, assaz prejudicial à própria Administração, é menos danosa para o agente público que nega, pois que se expede das raias descometidas e imponderadas do exercente do controle externo.
Ambas as partes — público, de um lado, e privado, do outro — têm entre si um composto de ideias veladas. Embora todos possuam a nítida ciência de que o reequilíbrio contratual, com fincas e amparos constitucionais, deva ser almejado sob a ótica dos princípios da segurança Jurídica e da boa-fé contratual, esse objetivo (o reequilíbrio contratual) costuma ser fatalmente prejudicado pela Administração Pública ao invocar o defasado fundamento de que o interesse público é indisponível, alijando a subjetividade inerente à práxis jurídica.
Esse cenário, com consequências amiúde danosas para a própria Administração Pública, carecia de imperativa transformação, caminho que começa a ser perfilhado pelo legislador por incontestável necessidade. A suficiência normativa já contida, por exemplo, no artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) não foi completamente assimilada pelo gestor público. Destarte, a transação, na busca do melhor interesse público, ainda que largamente permitida pelo legislador, não vem sendo implementada como deveria.
Talvez exausto de tanta insubordinação, o legislador, deferente à Administração Pública, seguiu adiante, tornando o tema do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos inteiramente disponível à transação. É dizer, dúvidas quanto à contemplação normativa não mais existem.
Nesse sentido, conceder, se presentes as premissas fáticas, o pretendido reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos firmados com a Administração Pública, não é mera faculdade, mas um dever, a ser enfrentado sem o mesmo receio que, outrora, ocupou espaço no contexto das contratações públicas no Brasil.
Quando o legislador, por exemplo, permite a conciliação e outros métodos alternativos de solução de controvérsias nas contratações públicas, faz-se imperioso reconhecer que não se trata de um puro aconselhamento diretivo imbuído de uma opinião nostálgica antecessora da benfazeja política conciliatória. É dizer, quis o legislador que a Administração pusesse em prática a solução de seus próprios conflitos, nomeadamente as querelas atinentes às contratações públicas.
Concedendo maior flexibilidade ao conteúdo transacional disponível ao gestor público, o legislador foi significativamente mais eloquente, produzindo uma exemplificação indiscutivelmente facunda, quando, no parágrafo único do artigo 151 da Lei nº 14.133/2021, destaca que o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos é direito patrimonial disponível.
Há, seguindo esse compasso, uma tratativa conciliatória incólume de suspeitas e questionamentos, não cabendo ao controle externo sequer se abalançar no conteúdo da dinâmica resolutiva empreendida pelas partes, sob pena de esfacelamento e indesejada ruína da prodigiosa prelação normativa.
A incisão carreada no parágrafo único do artigo 151 da Lei nº 14.133/2021 deve provocar nas partes contratantes o destemor de protagonizar a melhor escolha a ser traçada ao caso em concreto e, se para o atingimento dessa vontade, o reequilíbrio é necessário, indiscutível que a eleição da recomposição do pactuado deve ser buscada.
Nesse sentido, por ser a inflação um fenômeno notório, comprovado por números e, por isso, objetivamente palpável, a conformação do reequilíbrio do contrato não se trata de discricionariedade da Administração, ainda que o descompasso entre o preço buscado e a avença inicialmente inaugurada seja alarmante. Isso porque foge ao interesse das partes controlar a oscilação de preços.
Mesmo assim, muito embora haja uma infinidade de concessões normativas disponíveis à Administração que sufragam a amplíssima possibilidade de modificar a estrutura de preços do contrato “administrativo”, o temor de ultrapassar uma certa margem de razoabilidade satura a tomada de decisões e, na recalcitrância omissiva, a eficiência é deixada de lado, à míngua da solução única a ser conferida ao caso em concreto.
E por que única? Porque, numericamente, a inflação não produz resultados interpretáveis, à medida que é objetivamente palpável e, por assim ser, deve produzir, em conformação aritmética, uma só solução, teoricamente mais lesiva à Administração, mas que, na prática, é o único remédio encontrado.
Na verdade, o reestabelecimento do equilíbrio contratual não traz prejuízos efetivos à Administração, sendo interessante anotar que o reequilíbrio em questão é uma via de mão dupla: assim como o contrato pode se tornar mais oneroso para o contratado, a Administração, na qualidade de contratante, também pode assumir, no curso da execução contratual, onerosidade excessiva.
Primando não apenas pelos princípios da segurança-jurídica e da boa-fé contratual, mas também pela eficiência da Administração, deve-se, portanto, superar o mito de que o interesse público é indisponível, o que significa que as partes contratantes devem buscar soluções consensuais, evitando o Judiciário, que, muitas vezes, não possui o discernimento adequado à solução da equação: inflação versus reequilibro econômico-financeiro contatual.