Contratação pública e consequencialismo: os efeitos práticos da decisão

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Inquestionavelmente, há, no contexto da Lei nº 14.133/2021, uma cautela do legislador quanto à finalização do processo licitatório e, já na fase de execução contratual, a prioridade para o cumprimento do objeto contratado, independentemente da declaração de qualquer nulidade. Logo, sob qualquer vertente, anular e revogar licitação ou não executar o contrato passa a ser, sob a nova ótica interpretativa, extremada exceção, o que denota uma prevenção quanto às consequências práticas da decisão administrativamente adotada.

Foi necessário um giro normativo na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), com os acréscimos promovidos pela Lei nº 13.655/2018 e disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, para que o administrador público entendesse, pragmaticamente, que decisões administrativas necessitam ser sopesadas, ponderadas e, acima de tudo, calculadas, levando-se sempre em consideração as consequências que dela dimanam.

O terreno das contratações, por retratar o dia-a-dia da administração pública, é campo fértil para aplicação do consequencialismo jurídico, adaptando-se as decisões às suas consequências na realidade para as quais são destinadas e flexibilizando o manejo de normas jurídicas sempre com fins pragmáticos.

No ensejo da contratação pública, tudo indica que o legislador pretendeu alijar-se de valores jurídicos abstratos, ainda que, nas franjas do artigo 5º da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, repousem contundentes princípios jurídicos, os quais, teoricamente, provocam decisões inseguras e meramente contemplativas.

As mais variadas lições podem ser citadas ao longo da lei. Exemplificativamente, a lógica do artigo 71 é no sentido de corrigir, sempre que possível, as irregularidades do processo licitatório e, caso não seja possível a sanatória, a motivação deve ser suficientemente decisiva, elidindo quaisquer margens de dúvidas para soluções atípicas, é dizer, que anulem o processo, razão pela qual, topograficamente, o inciso I do referido artigo 71 trata da regularização dos vícios como ato prioritário no encerramento da licitação.

No mesmo compasso, segue o artigo 147, ao contextualizar as nulidades nos contratos, as quais somente podem ser declaradas se levados em consideração todos os fatores a que faz referência os infindáveis incisos e demais razões que do caput constam. Mais que isso, ainda que nulo, o contrato pode ser mantido, resolvendo-se em perdas e danos os efeitos decorrentes da nulidade (parágrafo único do artigo 147).

Na prática, percorrendo o caminho da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a atenção normativa em relação às consequências práticas da tomada de decisão é permanente e constante. O consequencialismo, adotado no perfil da nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), deixa claro que o tomador de decisões, em cenários delicados, como sói ocorrer nas contratações públicas, deve considerar as consequências da sua decisão e, para além, deve expor o caminho perseguido em seu tirocínio para chegar à percepção sobre tais implicações, elegendo, entre as opções possíveis, a que lhe pareceu adequada ao caso em concreto.

Não há, seguindo a coerência adotada na Lei nº 14.133/2021, espaço para deliberações desguarnecidas de fundamentação minimamente jurídica, sobremais quando se devem considerar os embasamentos de matiz econômica. Ausentes substratos em seus mais variados significados, decisões vazias, por si sós, tão apenas existem à luz de uma interpretação coercitiva que, desafortunadamente, a legislação ainda confere aos atos administrativos isolados.

Ocorre que na Lei de Licitações não há espaço para atos administrativos disjuntos, tanto mais quando o legislador utiliza, para a fase de licitação, o termo processo, cuja interpretação merece ser conjunta e coordenada, holisticamente distribuída.

Refratário de maiores tendências interpretativas (muito embora a profusão sistemática proporcione, em seu conjunto, uma visão ainda mais ordenada da fiel segurança e eficiência na aplicação do direito — escopo do perfil encontrado na Lindb), porquanto a literalidade do dispositivo é suficientemente elucidativa quanto à minudência da estrutura normativa e do conteúdo dogmático do dever de considerar as consequências práticas da decisão, o artigo 20 dispõe, textualmente, que:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

O desígnio do artigo 20 retromencionado é, para além de garantir segurança jurídica por meio de decisões mais qualificadas, librar a utilização de retórica, seja principiológica ou não, cuja aglutinação intensifica, sem embasamento racional e coerente, uma legitimidade superficial e voluntária.

Com todo o esforço argumentativo que se impõe às decisões na seara administrativa, é imperioso exigir alguma racionalidade dessa atividade pressagiadora para que ela possa ser minimamente controlável, cujo primeiro passo é submetê-la ao contraditório prévio, oportunidade em que a parte prejudicada, licitante ou contratado, poderá auxiliar o administrador público quanto à melhor medida a ser tomada, alertando sobre as consequências vindouras, maiormente se prejudiciais à administração, inclusive prevenindo para o erro grosseiro a que se refere o artigo 28 da Lindb.

À míngua de um contraditório condizente à exauriência que se propôs, sequer indicando o resultado consequencial e, destoante da meticulosa precisão dos consequentes efeitos, qualquer decisão desse jaez é retraída de caminhos persuasivos alusivos à racionalidade que trilhou para chegar até ela.

Logo, o administrador público não é livre para construir uma solução que reputar ser a consequência mais apropriada (ao seu puro e estreito alvedrio) ao caso, sobretudo quando sequer aponta presunção qualquer do resultado em si, sendo que a observância desse dever não se pode dar à custa de uma postergação excessiva para a solução do caso em concreto, causando prejuízos maiores, seja por repetir o processo licitatório como um todo, seja por anular um contrato e seus efeitos.

A inobservância de considerar as consequências práticas implica a nulidade da decisão por falta ou deficiência de fundamentação, seja nos termos do artigo 93, IX, da Constituição Federal, seja nos termos do artigo 11 e 489, § 1º, ambos do Código de Processo Civil. Assim sendo, não há como controlar o atendimento ao postulado inserido no caput do artigo 20 da Lindb se não existente uma fundamentação na decisão, sendo frívola qualquer menção íntima do administrador público quanto às consequências práticas para o problema jurídico proposto se essa pessoal e reservada análise não estiver sido pronunciada como fundamentação do ato administrativo questionado.

Portanto, a decisão administrativa distraída das consequências que dela advêm, face à sua mais inclemente ingenuidade (e por isso, desprovida de fundamentação consistente que analise, pragmaticamente, os efeitos que dela podem calhar), é um tanto mais prejudicial tanto quanto se mantém eficaz, sendo sempre imperiosa sua modificação, não somente por decorrência da aplicação da congruência, mas, significativamente, porque indigente de qualquer respaldo que alicerce a escolha, desde que fundamentadamente a ela (a decisão) se atribua uma solução tangível e evidenciável.

É hora de repensar o cenário das contratações públicas no Brasil à luz das consequências práticas da decisão perfilhada. Confessadamente, já não mais se tolera toda e qualquer motivação e, à administração, urge o dever de se prevenir quanto às decisões potencialmente danosas.