Contratação pública e a transação em penalidades

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Caros leitores, interessante reavaliar inquietante questão: no Direito Público, a administração somente pode fazer o que a lei expressamente autorizar? Este dogma ainda persiste ou se trata de obstáculo a ser superado?

No presente artigo, propõe-se considerar uma questão ainda mais instigante: à administração é conferido poder discricionário para fins de conciliação em sede de aplicação de sanção contratual no âmbito de contratos administrativos? Para estes articulistas, a reposta é positiva, maiormente após o advento da Lei nº 14.133/2021, referente à atual Legislação de Licitações e Contratos Administrativos, muito embora antes mesmo de sua vigência já fosse possível a tese em prol da benfazeja política conciliatória no âmbito dos processos administrativos de natureza sancionatória.

É que a formação do consenso, sobremais quanto tendente ao atingimento do melhor interesse público, revela, à administração, a possibilidade de contemplar, a um só instante, o interesse público (primário) e o interesse do particular, v.g., o interesse da contratada, que poderá, à guisa de simplória — e dedutível — conclusão, manter-se hígida no mercado, contratando com o poder público e perfectibilizando, na prática, o compromisso com o desiderato constitucional voltado ao atingimento de sua função social.

No arquétipo consensual e dialógico que serviu de base à novel e mais auspiciosa modelagem de administração pública [1], cujas fincas, com mais rigor, prendem-se à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), cumpre explorar o disposto no seu artigo 26 [2], com as alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018, a ver:

“Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

§ 1º. O compromisso referido no caput deste artigo:

I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;
II – (VETADO);
III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.”(grifamos)

A anosa legislação sobre o tema, que ainda remonta à década de 90 (Lei nº 8.666/93), não revela a tendência, insculpida no Direito Administrativo moderno, quanto à prática conciliatória. E nem é preciso transcorrer tantos marcos históricos para se perceber que o texto constitucional sempre abriu margens para ajustes da administração pública.

Nunca houve qualquer vedação na Constituição de 1988 quanto à busca do melhor exercício da função administrativa, justamente porque, bem ao contrário do que se possa imaginar, o legislador constituinte abarcou uma série de metas, direitos e objetivos desafiadores que devem ser perseguidos pelo Estado brasileiro, dentre os quais se destaca a necessidade de haver agilidade e eficiência administrativas [3] — esse é o ideal máximo da Carta Magna no que se refere ao exercício da função administrativa.

Em tal compasso, a Lei nº 14.133/2021 destinou um capítulo específico para “meios alternativos de solução de controvérsias”, donde se podem extrair os mais diversos dispositivos legais atinentes à matéria, tais quais (sem prejuízo de outros) os artigos 151 e 153, a ver:

“Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.

[…]

Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias.”

De modo inequívoco, verifica-se que o legislador conferiu respaldo jurídico para a administração celebrar compromisso em caso de inadimplemento de obrigações contratuais. Na verdade, trata-se mais de estímulo legal à benfazeja política conciliatória, haja vista que a Constituição de 1988 sempre sinalizou em tal sentido.

É necessário, pois, que o Poder Executivo seja visto como uma parte do Estado tão apta a transacionar, acordar ou a celebrar compromissos, quanto os membros dos Tribunais de Contas, o Ministério Público ou mesmo o Poder Judiciário. É aprazível (dentre outros) a edição do artigo 26, da LINDB e, em especial, do artigo 151, da Lei nº 14.133/2021, eis que de tais dispositivos legais espera-se uma maior abertura para as melhores e mais eficientes sinfonias administrativas.

Não por acaso, aliás, foi positivado — no artigo 20 da LINDB, incluído pela Lei nº 13.655/2018 — o instituto do consequencionalismo jurídico, nos seguintes moldes:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Nessa senda, percebe-se que o instituto do consequencionalismo jurídico se encontra invariavelmente ligado ao postulado da proporcionalidade, bem assim ligado à própria política conciliatória.

Ora, se o contratado não obteve qualquer vantagem financeira no processo licitatório e a administração/contratante, por sua vez, não suportou qualquer prejuízo, será mesmo peremptória a imposição de impedimento de contratar e licitar ao contratado que, por exemplo, atrasou pagamento de salários? Desafortunadamente, essa situação é presenciada com frequência diária.

Não havendo dolo, tampouco má-fé por parte do contratado, parece-nos que tal penalidade será excessiva, uma vez que representará, fatalmente, a decretação da morte civil das empresas que somente prestam serviços para a administração, comprometendo sua principal função social, qual seja, gerar renda e proporcionar a criação de novos postos de trabalho. Esta consequência, portanto, não deve ser ignorada.

À guisa de conclusão, nobres leitores, propaga-se esse singelo posicionamento com o intento de que a burocracia seja, cada vez mais, infirmada e, por conseguinte, as partes contratantes possam (com segurança jurídica, bem se diga) transigir em sede de aplicação de sanção contratual, sendo extremamente recomendável a participação de diferentes atores envolvidos no processo de contratação pública.

 

[1] Neste sentido: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2020. Também no mesmo sentido: FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade: fundamentos para o controle consensual da administração pública (TAG, TAC, SUSPAD, acordos de leniência, acordos substitutivos e instrumentos afins). Belo Horizonte: Fórum, 2020.

[2] Também no mesmo sentido, texto publicado no Consultor Jurídico, ao ensejo de celebração de um ano de LINDB: https://www.conjur.com.br/2019-abr-25/guilherme-carvalho-temos-celebrar-ano-lindb.

[3] Sérgio Ferras e Amauri Saad, in FERRAZ, Sérgio; SAAD, Amauri Feres. Autorização de serviço público. São Paulo: Malheiros. 2018, são contundentes quanto à categorização da Administração Pública eficiente. “(…) o núcleo hoje inegável do direito administrativo repousa no cultivo ao conceito de eficiência. (…). A busca da eficiência é a busca da própria razão de ser do direito administrativo; e tão dramática é essa constatação, que na referida obra coletiva, supracitada, chegamos, mesmo, a afirmar que eficiência é o nome que hoje poderíamos dar ao próprio direito administrativo”.


 é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.

 é advogado, com larga experiência em licitações e contratos, sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e membro da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).