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Supostamente no intuito de mitigar a revisão dos contratos firmados com a Administração Pública, a Lei nº 14.133/2021 destinou um capítulo próprio a tratar sobre a alocação de riscos, distribuindo, entre contratante e contratado, os possíveis eventos a desequilibrar a relação contratual.
Inquestionavelmente, trata-se de uma medida que merece as devidas aclamações, destacadamente porque, em tese, garante mais higidez e segurança jurídica aos contratos acordados com o poder público, conferindo-lhes maior credibilidade.
Logo, dentre as mais diversas nomeações previstas no artigo 5º da lei, o legislador conceituou a matriz de riscos como sendo:
“Art. 5º. Omissis
XXVII – cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações:
a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência;
b) no caso de obrigações de resultado, estabelecimento das frações do objeto com relação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico;
c) no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, devendo haver obrigação de aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia.”
No caput do artigo 22, ao tratar da instrução do processo licitatório, o legislador foi assente quanto à necessidade de o edital contemplar a matriz de riscos entre contratante e contratado, acentuando, no § 1º, que a matriz a que faz referência o caput deverá promover a alocação eficiente dos riscos de cada contrato e estabelecer a responsabilidade que caiba a cada parte contratante, bem como os mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este ocorra durante a execução contratual.
Interpretando, conjuntamente, o § 3º do artigo 22 e, especialmente, o inciso IX do artigo 92, indene de dúvidas que a matriz de riscos não é obrigatória para todo e qualquer tipo de contrato administrativo, sendo mais usual — e imperiosa — aos contratos de grande vulto, que, por contundência legal (artigo 6º, XXII), são aqueles superiores a R$ 200 milhões, ou quando se tratar de contratações integradas ou semiintegradas.
De tal modo, remanesce a indagação: é interessante estabelecer matriz de riscos a todos os contratos firmados com a administração pública? Desde já, não precipitadamente, antecipo que a matriz de riscos tende, em determinadas circunstâncias, a causar mais problemas do que, necessariamente, a solucionar o impasse que, teoricamente, fora desejado pelo legislador.
Isso porque é humanamente impossível mensurar, de forma prévia, possíveis riscos aos contratos ou mesmo, quando previsíveis, calcular os efeitos que são decorrentes de tais riscos. Portanto, a matriz de riscos, na maior parte dos contratos, é mais um baluarte a ser superado do que, necessariamente, uma confiança conferida às partes contratantes.
Em capítulo próprio, como acima destacado, o legislador também intentou conceder garantia hermética à matriz de riscos, ao prenunciar, no § 5º do artigo 103, que as partes renunciam aos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro quando há, no contrato, matriz de riscos, condicionando, todavia, que tal abdicação somente tem lugar quando atendidas as condições do contrato e da própria matriz de riscos. Para além, a exceção também repousa nas hipóteses previstas nos incisos I e II do mesmo § 5º, “alterações unilaterais determinadas pela Administração, na conformidade do art. 124, I” e “aumento ou redução, por legislação superveniente, dos tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato”.
Percebe-se, assim, que o legislador encastela a matriz de riscos e indispõe qualquer reequilíbrio caso a alocação haja sido previamente estabelecida no contrato. A ideia transmitida pela norma legal é no sentido de que, havendo matriz de riscos, toda e qualquer alteração promovida será condenável, porque não aderente às cláusulas contratuais.
Ocorre que existem eventos que, nada obstante estarem previstos no contrato, mais especificadamente na matriz de riscos, tendem a desarranjar o equilíbrio almejado pelas partes contratantes, pelo que, em tal hipótese, haverá de ter cancha um novo cenário, que, embora com colorido diverso, tende a atender às novas modificações, obviamente diversas das classes de cláusulas que, outrora, foram destacadas no contrato original.
Dentre tais fatores, um arrebatador exemplo é o fenômeno inflacionário, que converge para o rumo de manifesto desequilíbrio e, independentemente de ser ou não previsto na aludida matriz de riscos, tem o condão de tornar a proposta inexecutável.
Ponderando tais considerações, há de se levar em conta, também, a regra contida no artigo 151 da mesma Lei nº 14.133/2021, que, ao mencionar os métodos alternativos de solução de controvérsias, impõe o equilíbrio contratual como direito patrimonial disponível.
Ora, se a administração pode dispor sobre o equilíbrio dos contratos, nem mesmo a existência de matriz de riscos elide a possibilidade de revisão das cláusulas contratuais, não havendo, entre tais normas (artigo 151 e 103, § 5º), qualquer antinomia, notadamente por decorrência da interpretação que deve ser feita à luz da Constituição Federal, quando, em seu artigo 37, XXI, assegura o equilíbrio contratual por meio da garantia das condições efetivas da proposta. Vale, por assim dizer, a matriz encampada pelo legislador constituinte originário, a despeito da regra contida do § 5º do artigo 103 da Lei nº 14.133/2021.
Por tais razões, mesmo havendo matriz de riscos instituída no contrato, a inflação é fator suficiente para modificar a alocação dos riscos previstos, sobremais quando foge aos possíveis parâmetros preestabelecidos, sob pena de inviabilizar a execução do contrato e desafiar o propósito do legislador constituinte, que prioriza, inquestionavelmente, a manutenção das condições da proposta.