SERVIDOR PÚBLICO E OS DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO REQUERIMENTO PARA ANULAÇÃO DA CONSIGNAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO

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ARECER /2010 CCPJ-PGE/AP – Servidor público – Descontos em folha de pagamento – Requerimento para anulação da consignação pela Administração – Impossibilidade – Incompetência da Administração Pública para a realização do ato.

O Ilustríssimo Assessor Técnico do Gabinete da Secretaria  de  Administração  do  Estado  do  Amapá

SEAD – solicitou dessa Procuradoria do Estado – PGE – parecer técnico acerca de consulta formulada por servidor concernente a descontos autorizados em parcela vencimental.

Juntamente com o encaminhamento do pedido de manifestação da PGE, vieram os autos de todo o pro- cedimento administrativo, aberto, no âmbito da SEAD, por meio do Protocolo nº 2007/76631.

BREVE ESCORÇO FÁTICO Trata-se de pedido de suspensão definitiva de consignação de descontos em folha de pagamento requerido pelo servidor XXXXXX, em desfavor da Cooperativa de Crédito XXXXXX.

Segundo relata o servidor pleiteante, fora celebrado um Contrato de Empréstimo com Consignação de Des- conto em Folha em 72 (setenta e duas) parcelas mensais de R$ 2.059,62 (dois mil e cinquenta e nove reais e sessenta e dois centavos), em favor do Banco XXXXXX. Ocorre que, consoante suas alegações, os descon- tos vêm sendo efetuados em favor da Cooperativa de Crédito  XXXXXX,  e  não  do  Banco  XXXXXX,  o  que, segundo  o  peticionante,  é  falho,  já  que  não  houve

autorização de sua parte.

Brevemente, esses são os fatos que devem ser destacados.

FUNDAMENTAÇÃO

Quanto à firmação do contrato

Ao que nos parece, todo o imbróglio gira em torno da validade dos descontos efetuados pela Cooperativa de Crédito XXXXXX.

Por meio de uma simples vistoriada nos autos do procedimento administrativo em análise, já se percebe que existe um contrato (alheio aos interesses do Estado) entre o Banco e a Cooperativa.

Portanto, resta-nos saber se os descontos que vêm sendo efetuados por agente financeiro diverso daquele que contratara inicialmente são válidos.

Em verdade, conforme muito bem exposto na resposta ao OFÍCIO nº 229/2007 – 2ª Depol/Capital, elaborado pela Cooperativa XXXXXX, em 11 de dezem- bro de 2007, a verdade dos fatos é diversa da narração do servidor, autor do procedimento administrativo em comento.

Cumpre, dessa feita, transcrever trechos da aludida resposta, eis que esclarecedora de toda a problemática que se impõe, por ora, solucionar. Veja-se:

“Primeiramente, vale ressaltar que a XXXXXX não é uma instituição financeira, e sim uma Entidade Aberta de Previdência Privada, sem fins lucrativos (…). Sendo  assim,  o  Doutor  celebrou,  em  04.04.07, proposta de plano de pecúlio com esta Entidade, mediante pagamento de uma mensalidade no valor

de R$ 10,00 (dez reais), (…).

Após associar-se, na qualidade de participante (titular do plano de benefício), usufruindo de um dos benefícios concedidos pela XXXXXX, o Doutor celebrou contrato de empréstimo com uma das ins- tituições financeiras conveniadas a nossa entidade, ou seja, com o Banco XXXXXX, no montante de 61.903,94 (sessenta e um mil, novecentos e três reais e novena e quatro centavos), para ser pago em 72 (setenta e duas) parcelas de R$ 2.059,62 (dois mil

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e cinquenta e nove reais e sessenta e dois centavos) cada, conforme contrato em anexo.”1  (grifo nosso)

Ora, o Banco XXXXXX é um parceiro da aludida cooperativa, em favor de quem vem sendo efetuados os descontos.

A relação existente entre o Banco e a Cooperativa é de Direito Privado, totalmente estranha ao interesse público.

Conforme consta no parecer do Departamento de Legislação de Pessoal, fls. 15, segundo disposto no Decreto nº 191, de 11 de fevereiro de 2000, em seu art. 15, II, “a consignação relativa à amortização de empréstimo somente pode ser cancelada com a aquiescência do servidor consignante e da consignatária”.

Portanto, o Estado do Amapá não pode, espontaneamente, anular contrato firmado entre dois particulares, até mesmo porque lhe falta competência para tal ato.

Quanto ao princípio da autonomia da vontade

De outra banda, verificando-se que o contrato foi devida- mente firmado, é dizer, inabalado por qualquer dos vícios do negócio jurídico, pode-se, facilmente, adentrar no tema da autonomia da vontade.

A vontade sempre foi vista como elemento central dos con- tratos. No século XIX, houve a máxima exposição da vontade individual como poder jurígeno. A confiança no livre jogo da liberdade individual, no contratualismo, era fator inafastável da segurança jurídica e necessário à estabilidade das relações negociais.

O legislador pátrio, seguindo o compasso do Direito Com- parado, sobremaneira do Código de Napoleão, insculpiu tal desiderato no Código Civil de 1916.

Não obstante esse período de máxima liberdade individual, a vontade no contrato já não aparece tão soberana, como no Código Napoleônico: surge a chamada CRISE NO CONTRATO (dirigismo contratual; novas formas do contrato e intervenção judicial nas relações contratuais garantindo a equidade).

Pois bem. Não se deseja firmar, com tal narração histórica, algo desvinculado ao que se propõe com a presente consulta. É que, por mais que exista, hodiernamente, o dirigismo contratual2, este somente pode ser exercido, no Direito brasi- leiro, por meio do Judiciário, e não mediante a realização de

ato administrativo.

Saliente-se que o pleiteante, conforme comprovam as folhas

18/19 dos autos, já pleiteou o mesmo objeto dessa consulta perante o Judiciário3, o que afasta, ainda mais, qualquer pos- sibilidade de atendimento de seu pleito.

A um, porque, por mais que não exista litispendência entre o procedimento administrativo e o processo judicial, pode-se dizer que, em face da ausência de um contencioso administra- tivo no Judiciário brasileiro, não se pode falar em coisa julgada administrativa, ou seja, a última palavra é sempre do Judiciário.

“Por mais que exista, hodiernamente, o diri- gismo contratual, este somente pode ser exercido, no Direito brasileiro, por meio do Judiciário, e não mediante a realização de ato administrativo.”

A dois, porque a Administração Pública Estadual não pode controlar atos alheios à sua função precípua, anulando contrato firmado em ato de extrema manifestação de livre vontade.

Não obstante o referido processo judicial ter sido arquiva- do, conforme demonstra o andamento processual também juntado aos autos (fls. 22-23), não se pode revolver, na esfera administrativa, o mesmo assunto.

CONCLUSÃO – Pelo exposto,  opinamos  pelo  indeferimento do pleito do servidor XXXXXX, uma vez que a relação negocial procedida é totalmente alheia ao controle da Administração Pública, sob pena de desvio de finalidade, além da ausência de competência, tornando nulo o possível ato administrativo de cancelamento do desconto consignável que se pleiteia.

Ademais, a parte prejudicada, no caso a Cooperativa XXXXXX, pode combater o ato no Judiciário, gerando, inclu- sive, responsabilização do Estado.

Com escusas de haver excedido o limite meramente técnico que a consulta formulava e adentrando, um pouco, na seara administrativa, é o que nos parece.

Macapá, 26 de setembro de 2010.

Guilherme Carvalho e Sousa Procurador do Estado

NOTAS

Resposta ao Ofício nº 229/2007 – 2ª Depol/Capital, elaborado pela XXXXXX, em 11 de dezembro de 2007, fls. 23-25.

Possibilidade de o Estado intervir, por meio do Judiciário, nos contratos firmados livremente.

Processo nº 13.919/2008, com trâmite no Juizado Especial Cível da Zona Sul da Comarca de Macapá.

GUILHERME CARVALHO E SOUSA é Procurador do Estado do Amapá da Classe Especial lotado em Brasília-DF, mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB-DF, Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Faculdade Cândido Mendes-RJ, Professor de Processo do Trabalho do IESB-DF e Professor do Curso de Pós-Graduação da Faculdade CEAP-AP. Advogado militante, com atuação prioritária nos Tribunais Superiores.

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