Baixe o arquivo em pdf clicando aqui
A Lei 8.666/1993 aclara a importância do parecer jurídico no processo de contratação pública. Inicialmente, o inciso VI do seu artigo 38 prevê a necessidade de juntar ao processo administrativo pareceres jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade, ao tempo em que o parágrafo único do mesmo dispositivo legal destaca que “as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”. Logo, para o contexto da Lei 8.666/1993, o parecer jurídico é indispensável quando da análise do instrumento convocatório (edital e seus anexos), bem assim nos casos de contratação direta.
Por sua vez, a Lei 14.133/2021 trata, centralmente, sobre o parecer jurídico em duas oportunidades, divididas em dois grandes blocos: o primeiro deles inserto no artigo 10, caput, e §§ 1º e 2º, cujas vicissitudes ainda serão abordadas ao longo de outros textos nesta mesma coluna; o outro bloco tem previsão no art. 53, § 1º e respectivos incisos, que cuidaremos de analisar neste texto, bem como nos §§ 3º, 4º e 5º, os quais, apartadamente, serão objeto de outro artigo.
Dando início a essa primeira linha de abordagem (artigo 53, caput e § 1º), insta salientar que, para além do que previu a Lei 8.666/1993, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos elenca um conteúdo substancial do que deve estar contido no parecer jurídico, bem assim a forma como ele deve ser redigido. Logo no caput do art. 53, há a previsão de que “ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação”. É dizer, o parecer jurídico é indispensável para atestar a análise da fase preparatória, indicando e distinguindo quais os possíveis pontos, segundo análise estritamente jurídica, a serem modificados, de modo a evitar posteriores nulidades, primando pela higidez do processo de contratação pública.
Todavia, diferentemente do que preconiza a Lei 8.666/1993, a Lei 14.133/2021 enumera, nos incisos I e II do § 1º do artigo 53, as diretrizes a serem observadas quando da elaboração do parecer jurídico, assim o fazendo de forma impositiva. Textualmente, o legislador prescreve que, “na elaboração do parecer jurídico, o órgão de assessoramento jurídico da Administração deverá: I – apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade; II – redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica”.
Embora seja norma de conteúdo cogente, cuja inobservância pode cominar responsabilização, alguns pontos merecem ser destacados, notadamente em face da amplitude que é conferida ao aludido dispositivo legal, bem como à terminologia nele adotada. A inserção de tais dispositivos legais pode, se mal interpretados, desaguar em uma contundente insegurança jurídica, criando margem para uma responsabilização descomedida do parecerista.
Primeiramente, relativamente ao inciso I, o legislador não foi suficientemente claro em definir qual agente público detém a atribuição para o estabelecimento das prioridades estabelecidas no dispositivo legal. Dito de outro modo, não resta definido na lei se a ordem de prioridade deve ser estabelecida pelo próprio órgão de assessoramento jurídico ou se é encargo do gestor, ou mesmo se a definição da sobredita ordem de prioridade é uma decisão conjunta. A nosso sentir, a despeito de a lei não haver sido o bastante precisa quanto a este aspecto, não é atribuição do parecerista objetivar a ordem de prioridade. Além disso, é de se destacar que os critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade a que se refere o inciso I não se limitam à licitação, estendendo-se também à fase de contratação, como, por exemplo, à continuidade de um contrato de prestação de serviços, bem assim às contratações diretas (dispensas e inexigibilidades de licitação).
Quanto ao inciso II, a análise dos “elementos indispensáveis” deve se restringir à abordagem jurídica, sem adentrar em tecnicismos que não estejam adstritos às questões jurídicas apresentadas. Dito de outro modo, a expressão “todos os elementos indispensáveis” utilizada pelo legislador está relacionada tão somente aos aspectos jurídicos afetos à contratação examinada pelo órgão de assessoramento.
Por outro lado, o inciso II retrata uma inquietação já encontrada na jurisprudência do Tribunal de Contas da União, evitando a prolação de pareceres genéricos[1], que não enfrentam o questionamento jurídico a ser avaliado no caso em concreto, o que pode gerar responsabilização, a teor do disposto no artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Ocorre que o legislador, neste inciso II, foi assaz abrangente, na medida em que não delimita qual o conteúdo dos elementos indispensáveis à contratação. Como já frisado, compreende-se que a pretensão normativa se limita à análise de todos os elementos indispensáveis, porém de conteúdo jurídico. Isso se justifica na medida em que o próprio caput do mesmo artigo 53 se refere à “análise jurídica da contratação”.
Ocorre que, por se tratar de norma geral de licitação, era de rigor haver o legislador se atentado às particularidades de cada órgão de assessoramento jurídico a que se referem as normas constantes na Lei 14.133/2021. Há, portanto, um ponto que merece, inicialmente, ser explicitado e que servirá – com maior ou menor frequência – aos outros textos que seguirão este escrito: o que se deve entender por órgão de assessoramento jurídico? Muito embora a mesma Lei se refira, em seu artigo 6º, I, ao conceito de órgão como “unidade de atuação integrante da estrutura da Administração Pública”, tal conceito não especifica, detalhadamente, o que é órgão de assessoramento jurídico. Portanto, é imprescindível, de antemão, esclarecer o possível sentido sobre a expressão “órgão de assessoramento jurídico”.
É mais simplório entender como órgãos de assessoramento jurídico as Procuradorias, especialmente pela previsão contida nos artigos 131 e 132 da Constituição Federal, os quais, respectivamente, tratam sobre a Advocacia Pública no âmbito da União e na seara dos Estados e do Distrito Federal. Dito de outro modo, para estas unidades federativas o problema está facilmente solucionado.
Porém, quando se trata de municípios, os questionamentos despontam sobre os mais variados vieses. Primeiramente, porque a Constituição Federal não menciona qualquer dispositivo legal que trate sobre a Advocacia Pública na esfera municipal; segundo, porque mais da metade dos Municípios brasileiros não possuem procuradores de carreira[2], o que dificulta, ainda mais, o equacionamento jurídico a ser conferido ao caso em concreto[3]. Logo, em grande parte dos Municípios brasileiros, a par da existência de órgãos de assessoramento jurídico (se existentes), o preenchimento dos cargos ocorre de forma precária, por livre nomeação e exoneração, o que implica, em certa medida, no conteúdo do parecer jurídico a ser emitido, maiormente na área de contratação pública.
Deve-se levar em consideração, ainda, que já existem recentíssimos julgados no sentido de que advogados comissionados não podem emitir parecer jurídico em licitações[4], o que deságua em um problema nitidamente insolúvel, tendo em vista que, conforme já noticiado, mais da metade dos Municípios brasileiros ocupam seus órgãos de assessoramento jurídico com servidores nomeados em cargos em comissão.
É imprescindível também alertar que, nada obstante o inciso III[5] do referido parágrafo 1º haver sido objeto de veto presidencial, ainda assim se faz necessário que a opinião jurídica constante do parecer jurídico seja conclusiva, constando, inclusive, as sugestões de medidas a serem adotadas pela autoridade competente para decidir.
Além disso, outro ponto merece destaque nessa primeira abordagem: o possível caráter vinculante do parecer jurídico e a correspondente independência funcional de quem o emite, tema este que encontra reflexo, segundo mencionado no início desse texto, com maior incidência nos órgãos de assessoramento jurídico municipais, destacadamente quando não possuem procuradores dotados de independência funcional. Assim, por não possuírem a imparcialidade naturalmente exigida para o exercício do cargo, o conteúdo das normas previstas nos incisos I e II do § 1º do artigo 53 pode restar comprometido.
O veto ao § 2º desse mesmo dispositivo legal[6] aclara, contudo, possíveis dúvidas acerca da natureza da manifestação do órgão de assessoramento jurídico, levando à conclusão de que o parecer emitido não é vinculante, uma vez que o gestor pode decidir em sentido contrário, devendo, nesse caso, apontar os motivos pelos quais discorda do conteúdo do parecer.
À guisa de considerações finais, é factível afirmar que o cumprimento das exigências previstas pelo legislador quanto ao teor e à forma de elaboração de um parecer jurídico pode variar, a depender da estrutura organizacional do órgão de assessoramento jurídico, bem como da forma como são preenchidos os cargos. Por fortuna, ainda há tempo de se adaptar à Nova Lei, prospectando soluções estruturantes e proporcionais.
[1] TCU – RP: 01086220188, Relator: WEDER DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 26/05/2020, Primeira Câmara.
[2] Já tivemos a oportunidade de tratar esse tema neste Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2017-dez-12/guilherme-carvalho-nem-todo-municipio-suporta-procuradoria2. Acesso em 07 de junho de 2021. No mesmo sentido: https://www.conjur.com.br/2019-ago-25/bruno-galindo-advocacia-publica-autonomia-municipio. Acesso também em 07 de junho de 2021.
[3] Para maiores esclarecimentos sobre o tema, ver: “FERRAZ, Sergio; CARVALHO, Guilherme. Advocacia Pública Municipal: soluções estruturantes proporcionais. Salvador: Juspodivm. 2021”.
[4] Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Acórdão 769/2021. Pleno.
[5] Dispunha o referido dispositivo legal vetado: “dar especial atenção à conclusão, que deverá ser apartada da fundamentação, ter uniformidade com os seus entendimentos prévios, ser apresentada em tópicos, com orientações específicas para cada recomendação, a fim de permitir à autoridade consulente sua fácil compreensão e atendimento, e, se constatada ilegalidade, apresentar posicionamento conclusivo quanto à impossibilidade de continuidade da contratação nos termos analisados, com sugestão de medidas que possam ser adotadas para adequá-la à legislação aplicável”.
[6] O dispositivo vetado apresentava o seguinte teor: “§ 2º O parecer jurídico que desaprovar a continuidade da contratação, no todo ou em parte, poderá ser motivadamente rejeitado pela autoridade máxima do órgão ou entidade, hipótese em que esta passará a responder pessoal e exclusivamente pelas irregularidades que, em razão desse fato, lhe forem eventualmente imputadas.”. O veto foi apresentado sob o argumento de que “a interpretação do dispositivo poderia levar a crer que o parecerista é co-responsável pelo ato de gestão, contrariando a posição tradicional da jurisprudência pátria e trazendo insegurança a atividade de assessoramento jurídico”. Foi também argumentado que a manutenção do dispositivo poderia desestimular o gestor a tomar medidas não chanceladas pela assessoria jurídica, mesmo que convicto da correção e melhor eficiência destas medidas.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.
Luiz Felipe Simões é advogado, pós-graduado em controle externo, mestrando em Direito Administrativo e auditor de controle externo do TCU.