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A Lei nº 14.133/2021 inovou, substancialmente, as regras de contratação pública no país. Quanto aos critérios de desempate, há substanciais alterações, destacando-se as políticas de ESG (Enviromental, Social and Governance)[1], onde se valorizam os ativos intangíveis que representam, cada vez mais, porcentagem crescente do valor futuro das organizações. Esta foi, sem dúvidas, uma opção do legislador, que pode ser observada ao longo de todo o corpo normativo.
Todavia, há de se destacar que, a par dos vantajosos aperfeiçoamentos normativos, há, inquestionavelmente, um certo grau de indeterminação nos critérios de desempate das propostas, discernimentos estes que tendem a ocasionar, na prática, seríssimas problematizações, face ao amplo caráter subjetivo conferido pelo legislador na efetiva concretização de tais políticas públicas.
Cumpre salientar, inicialmente, que a Lei nº 8.666/1993 se refere ao desempate das propostas em uma única oportunidade, quando, no § 2º do artigo 2º, constrói critérios objetivos, ao estabelecer que, “em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: produzidos no país; produzidos ou prestados por empresas brasileiras; produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País; produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reservas de cargo prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação”.
Dito de outro modo, a Lei nº 8.666/1993 é enfática quanto à consignação de preceitos objetivos quando há empate nas propostas, tendo como foco principal políticas de conteúdo protecionista, cuja constitucionalidade sempre foi objeto dos mais variados questionamentos. No mais, para além das políticas de proteção ao mercado nacional, há, no inciso IV do referido § 2º, como derradeira regra de definição de desempate, a proteção aos portadores de deficiência no mercado de trabalho, inovação legislativa que foi acrescida à Lei somente no ano de 2015. Grosso modo, trata-se, portanto, de critérios objetivos.
Por sua vez, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos refere-se ao desempate das propostas em duas sequências de fases: a primeira delas (caput do artigo 60)ocorre quando há uma igualação numérica; a segunda (§ 1º do artigo 60)se dá quando, não sendo solucionado o desempate pelos critérios estabelecidos no caput, assegura-se uma segunda ordem de preferência, cujos critérios são ora objetivos, ora subjetivos. Dito de outro modo, o legislador não foi tão rigoroso quanto a esta divisão, sendo que parte dos critérios que consta no § 1º também poderiam estar inseridos no caput, em face da mesma teleologia e precípuas finalidades.
Anteriormente à análise do caput e do § 1º do artigo 60, deve-se ressaltar que a lógica deste dispositivo legal em nada afeta o critério de desempate previsto na Lei Complementar nº 123/2006, que assegura preferências às microempresas e empresas de pequeno porte, conforme disposição igualmente contida no § 2º do mesmo artigo 60. Este é, prioritariamente, o inicial critério de desempate a ser observado pela Administração, competindo verificar o cabimento da regra especial antes de se cogitar da incidência das outras normas de desempate.
Para além da proteção concedida às microempresas e empresas de pequeno porte, importa realçar, por outro lado, que o artigo 26, da Lei nº 14.133/2021, impõe margem de preferência para produtos nacionais, produzindo a possibilidade de haver proposta vencedora com valor superior ao valor da proposta de outro licitante.
Passemos, portanto, à análise da matéria sob a ótica da Nova Lei. Diversamente da previsão contida na Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 14.133/2021 opta, inegavelmente, por uma ordem de primazia quanto aos critérios de preferência (com perdão à tautologia), alocando, em um primeiro plano, preceitos de conteúdo subjetivo e, somente quando não concretizado o desempate na primeira etapa, passa a estabelecer, no § 1º, alguns critérios mais objetivos, sem prejuízo de certo grau de subjetividade também inserto em incisos do mesmo § 1º. Poderia o legislador haver aplicado uma só sequência, estabelecida no próprio caput, sem a necessidade de criação de um parágrafo apartado.
Reza o art. 60, caput, que “em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para o qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos em lei; desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento; desenvolvimento pelo licitante de programas de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle”. É imprescindível destacar que os incisos do caput do art. 60 estabelecem uma ordem de aplicação dos critérios de desempate, de modo que o inciso II somente pode ser aplicado quando não possível a aplicação do inciso I ou quanto este já haja sido aplicado, sucedendo a mesma metódica em relação aos subsequentes incisos.
O primeiro critério, previsto no inciso I do caput do artigo 60, é o mais objetivo possível, porquanto concretiza, por meio de uma disputa final, a oportunidade para que os licitantes apresentem nova proposta em ato contínuo à classificação. Embora não seja aplicável a todos os tipos de licitações, como, por exemplo, as licitações cujo critério de julgamento é a melhor técnica ou o melhor conteúdo artístico, este é, sem dúvidas, o discernimento mais objetivo, sobre o qual não pairam dúvidas, tampouco intangibilidades, designadamente para as licitações onde o julgamento das propostas seja realizado levando-se em consideração o menor preço, o maior desconto ou o maior retorno econômico.
Entretanto, persistindo o empate entre as propostas, o legislador estabelece, como segundo critério de desempate, o desempenho contratual prévio dos licitantes. Quanto a este critério, palpitam severas problematizações. Primeiro, porque o legislador não estabelece o locus onde se afere o comportamento contratual do licitante, nem mesmo pontuações materiais. Assim sendo, poderá um licitante, concorrendo, pela primeira vez, a uma licitação em um determinado Estado da federação, não possuir, nesta unidade federativa, qualquer comportamento contratual prévio, de modo que deverá a Administração envidar esforços, junto a outros órgãos ou entidades contratantes, sobre a experiência pretérita do licitante. Ademais disso, o comportamento contratual poderá variar em relação a cada órgão ou entidade contratante, sendo que, quanto a este ponto, a lei não estabeleceu qualquer mecanismo prático de diferenciação.
Muito embora a Lei também estabeleça o comportamento contratual do licitante como critério para julgamento de propostas com base na técnica e preço (§ 3º do artigo 36 c/c §§ 3º e 4º do artigo 88), persiste, ainda, amplo grau de discricionariedade para a Administração, de modo que este critério de desempate somente pode ser efetivado se houver, por parte da Administração, a formulação de parâmetros objetivos concretos e seguros.
Em um terceiro momento, permanecendo a irresolução de propostas, o legislador, no inciso III, estabelece outra ponderação amplamente etérea, não pelo conteúdo, mas pela ausência de forma quanto ao procedimento em que deva ocorrer. Decerto, inegável que o objetivo almejado pelo legislador é verdadeira política pública, que visa à igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, atitude normativa que merece as mais contundentes aclamações. No entanto, persiste o legislador na mesma falha quanto à subjetividade, ao mencionar que tais políticas de equidade são estabelecidas em regulamento.
Ainda quanto à disposição contida no inciso III, a norma não prediz de onde emana o regulamento. Primeiramente, deve-se indagar se tal dispositivo legal é norma geral de licitação; se sim, a questão é mais facilmente solucionável, porque os critérios devem ser estabelecidos em norma regulamentar expedida pelo Poder Público Federal. Por outro lado, ao não se interpretar tal dispositivo legal como norma geral de licitação, não há negar a possibilidade da existência de regulamentos municipais e estaduais, que podem contemplar políticas diversas de equidade, estabelecendo outros parâmetros que os preconizados no regulamento federal, perdurando a mesmíssima problemática envolta à ininteligibilidade de conceitos. Mais uma vez, a aplicação do inciso III fica condicionada à edição de norma regulamentadora notadamente objetiva.
Por derradeiro, o inciso IV do caput do art. 60 faz alusão aos programas de integridade adotados pelos licitantes, os quais deverão seguir as orientações dos órgãos de controle. Este é, sem dúvida, um mecanismo de desempate menos subjetivo que os demais critérios antecedentes e que, por vontade do legislador, devem ser preferencialmente atendidos. Tal critério, contudo, poderia ter aparecido de forma antecedente aos demais, não somente porque é mais objetivo, como também porque situa medidas de combate à corrupção.
Não havendo o desempate segundo os critérios sucessivamente previstos no caput, o § 1º do art. 60 constitui uma segunda etapa de ordem de preferência, cujo conteúdo é bastante similar à lógica adotada pelo § 2º do artigo 2º da Lei nº 8.666/1993, sobremais porque prioriza produtos nacionais ou produzidos e prestados por empresas brasileiras, bem assim por empresas que invistam em pesquisa e tecnologia no país. Há, porém, neste séquito de critérios, um aperfeiçoamento em relação à Lei nº 8.666/1993, que condiz com medidas ambientalmente sustentáveis, conforme práticas de mitigação estabelecidas na Lei nº 12.187.2009, que “institui a Política Nacional sobre Mudança de Clima – PNMC e dá outras providências”.
Analisando o artigo 60 na sua inteireza, indene de dúvidas os elogiáveis desígnios almejados pelo legislador, enfatizando ações afirmativas e priorizando, quando não solucionada a proposta pelo preço, a contratação mais vantajosa. A inversão da ordem lógica (estabelecimento de critérios mais subjetivos logo no caput)relativamente à avaliação de vantajosidade, analisando as propostas primeiramente sob o prisma de sua aceitabilidade, comprova um meritório esforço normativo.
Porém, como acima mencionado, perdura um subjetivismo aguçado, maiormente porque os critérios particulares e idiossincráticos estabelecidos não são verificáveis de plano, abrindo-se uma amplitude sem precedentes quanto ao grau de discricionariedade da Administração, o que pode comprometer a eficiência do processo licitatório, além de abrir margens para possíveis discussões no plano judicial.
[1] Em outro texto nesta mesma coluna, abordaremos, com maior amplitude, o tema ESG.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2021, 8h02