Baixe o arquivo em pdf clicando aqui
No dia 1º de abril do corrente, foi publicada e entrou em vigor a Lei nº 14.133/2021, que veio para substituir a antiga Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993), bem como a Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).
Embora a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos já esteja em vigor, o seu artigo 193, II, estabeleceu o prazo de dois anos de transição até que aqueles outros regimes jurídicos sejam definitivamente revogados. Até lá, as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão optar por utilizar uma ou outra legislação em seus processos de licitação.
Muito se tem comentado que uma das inovações da Lei nº 14.133/2021 foi trazer previsão expressa, em seu artigo 59, III, de que deverão ser desclassificadas da licitação as propostas que “permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação”. Em suma, o orçamento estimado deverá ser necessariamente tomado, para fim de julgamento, como o preço máximo que a Administração se dispõe a pagar pela execução do objeto pactuado.
Nesse sentido, propostas finais formuladas pelos licitantes contendo valores superiores ao orçamento elaborado pelo órgão ou entidade contratante deverão ser excluídas da disputa. Mas não se trata de desclassificação sumária, haja vista a possibilidade de a Administração, com base no caput do artigo 61 da Lei nº 14.133/2021, uma vez definido o resultado do julgamento, “negociar condições mais vantajosas com o primeiro colocado”.
A propósito, essa negociação poderá também ser feita com os demais licitantes, segundo a ordem de classificação, “quando o primeiro colocado, mesmo após a negociação, for desclassificado em razão de sua proposta permanecer acima do preço máximo definido pela Administração” (parágrafo 1º do artigo 61).
Essa práxis já vem sendo observada por empresas públicas e sociedades de economia mista, por força do disposto no inciso IV do artigo 56 da Lei nº 13.303/2016, segundo o qual, “efetuado o julgamento dos lances ou propostas, será promovida a verificação de sua efetividade, promovendo-se a desclassificação daqueles que se encontrem acima do orçamento estimado para a contratação”. Tais entidades, vale frisar, continuarão a ter suas licitações regidas exclusivamente pela Lei das Estatais[1].
Para quem também utilizava o regime jurídico da Lei nº 12.462/2011 em suas licitações, igualmente a Lei nº 14.133/2021 não trouxe novidade nessa temática, haja vista que, à luz do inciso III do artigo 24 do RDC, serão desclassificadas as propostas que “permaneçam acima do orçamento estimado para a contratação”.
E a pergunta que não quer calar: para aqueles que tinham suas licitações regidas apenas pela Lei nº 8.666/1993 e pela Lei nº 10.520/2002, haverá mudança de orientação após a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021? Os que acompanham a jurisprudência do TCU certamente responderão sim a esse questionamento. Basta atentar, por exemplo, para o conteúdo do enunciado extraído do Acórdão nº 1549/2017-TCU-Plenário – constante da ferramenta ‘Jurisprudência Selecionada’ –, vazado nos seguintes termos: “Nas licitações regidas pela Lei 8.666/1993, o valor orçado não se confunde com o preço máximo, a menos que o instrumento convocatório estabeleça tal condição. Não sendo ela estabelecida, a contratação por preço superior ao orçado deve ser justificada.”.
Naquela assentada, apreciava-se representação formulada ao TCU apontando possível irregularidade em convite (regido pela Lei nº 8.666/1993) promovido pela Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras)[2], cujo objeto era a locação de embarcações. De acordo com o representante, o preço final contratado teria sido 6,32% superior ao valor orçado pela Petrobras, à evidência de sobrepreço. Em seu voto, o relator pontuou que “a Lei de Licitações e Contratos estabelece que o preço da proposta vencedora deve estar compatível com os preços de mercado, sem embargo de prever a possibilidade de a entidade licitante estabelecer, no edital, que o valor global não poderá exceder determinado limite, tal como disposto no art. 48, inciso II”.
A corroborar sua assertiva, o relator enfatizou que “o valor orçado não se confunde com preço máximo, a menos que o edital estabeleça tal condição”, e que a fixação do preço máximo só é obrigatória na contratação de obras e serviços de engenharia, invocando, para tanto, a Súmula TCU nº 259. Nesse contexto, cumpriria então averiguar se o instrumento convocatório da licitação em exame estabelecera o preço constante do orçamento como limite máximo para aceitabilidade das propostas.
Após transcrever o item do convite relativo ao julgamento das propostas, o relator concluiu que o orçamento não fora fixado como preço máximo aceitável pela Petrobras, inexistindo, dessa forma, afronta ao instrumento convocatório. Ponderou, contudo, restar como impropriedade “uma aparente insuficiência na justificativa da contratação por preço superior ao orçado”, sendo bastante, a seu ver, dar ciência à entidade.
Esse entendimento da Corte de Contas restou também consignado no voto condutor do Acórdão nº 3195/2014-TCU-Plenário, nos seguintes termos: “nos regimes jurídicos da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), ‘valor orçado’ – ou ‘orçamento’ ou ‘valor de referência’ ou simplesmente ‘valor estimado’ – não se confunde com ‘preço máximo’. O valor orçado, a depender de previsão editalícia, pode eventualmente ser definido como o preço máximo a ser praticado em determinada licitação, mas não necessariamente. São conceitos distintos, que não se confundem.”
Para melhor compreender o entendimento ainda hoje perfilhado pelo TCU, é mister transcrever, preliminarmente, o conteúdo da sobredita Súmula nº 259: “Nas contratações de obras e serviços de engenharia, a definição do critério de aceitabilidade dos preços unitários e global, com fixação de preços máximos para ambos, é obrigação e não faculdade do gestor.”. Em termos práticos, o Tribunal deixou assente que, em se tratando de obras e serviços de engenharia, é obrigatória a fixação de preços máximos, tanto unitários quanto global, concluindo então que, para outros objetos que não obras e serviços de engenharia, essa fixação é meramente facultativa.
Ao compulsar a jurisprudência do TCU, constata-se que tal entendimento foi construído com base em interpretação do inciso X do artigo 40 da Lei nº 8.666/1993 – aplicado subsidiariamente ao pregão por força do artigo 9º da Lei nº 10.520/2002[3] –, segundo o qual o edital “indicará, obrigatoriamente”, o “critério de aceitabilidade dos preços unitário e global, conforme o caso, permitida a fixação de preços máximos e vedados a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência, ressalvado o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48”.
Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de que o aludido dispositivo legal não faz nenhuma distinção, ao contrário do que fez o TCU na redação da Súmula nº 259, acerca do objeto da licitação, se obra, serviço (de engenharia ou não) ou compra. Em segundo lugar, percebe-se nitidamente que a Corte de Contas deixou-se influenciar pela expressão “permitida a fixação de preços máximos”, contida no inciso X do artigo 40 da Lei nº 8.666/1993, conferindo assim somenos importância à expressão “o edital indicará, obrigatoriamente, o critério de aceitabilidade dos preços unitário e global”.
Não se está aqui a ignorar que a redação do aludido dispositivo não é tão clara quando deveria, mormente pelo uso da expressão “conforme o caso”, a qual só tem razão de subsistir se atrelada à possibilidade da adjudicação por item ou, conforme o caso, por preço global[4]. Não se deve dar a ela interpretação no sentido de conferir discricionariedade à Administração para estabelecer no edital, ou não, critério de aceitabilidade de preços, sob pena de violar o princípio do julgamento objetivo e, com isso, gerar insegurança aos pregoeiros e membros de comissão de licitação nas suas tomadas de decisão na fase de julgamento das propostas.
Assim sendo, o edital deverá obrigatoriamente, por força de lei, indicar o critério de aceitabilidade de preços, mediante a fixação (e não simplesmente “permitida a fixação”) de valores máximos (só unitários ou, conforme o caso, unitários e global), o que nos leva à inevitável conclusão de que o orçamento elaborado pela Administração sempre será tomado como o preço máximo aceito no certame licitatório.
O entendimento que ora sustentamos encontra guarida no artigo 39 do Decreto Federal nº 10.024/2019[5], segundo o qual, encerrada a etapa de negociação, o pregoeiro examinará a proposta classificada em primeiro lugar quanto à adequação ao objeto e à “compatibilidade do preço em relação ao máximo estipulado para contratação no edital”, o que, a toda evidência, está em perfeita consonância com o conteúdo do inciso X do artigo 40 da Lei nº 8.666/1993, de aplicação subsidiária no âmbito do pregão. Em apertada síntese, não há, nem nunca houve, amparo legal para se distinguir preço estimado de preço máximo na licitação.
Guilherme Carvalho é advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas e ex-procurador do Estado do Amapá. E-mail: [email protected]
Luiz Felipe Simões é advogado, pós-graduado em controle externo, mestrando em Direito Administrativo e auditor de controle externo do TCU. E-mail: [email protected]
[1] De acordo com o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei nº 14.133/2021, não são abrangidas por esta lei “as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei”.
[2] O artigo 91 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, concedeu o prazo de vinte e quatro meses, a partir do início de sua vigência, para que as empresas públicas e as sociedades de economia mista promovessem as adaptações necessárias à adequação ao disposto na referida lei.
[3] Art. 9º Aplicam-se subsidiariamente, para a modalidade de pregão, as normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
[4] Essa distinção encontra-se bem delineada na Súmula TCU nº 247: “É obrigatória a admissão da adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que, embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade.”
[5] Regulamenta a licitação, na modalidade pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, no âmbito da administração pública federal.