O valor da causa no mandado de segurança em licitações

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A despeito da previsão dos recursos administrativos e pedidos de reconsideração, insertos na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ambos com efeito suspensivo (inteligência do artigo 168 da Lei nº 14.133/2021), a utilização do mandado de segurança sempre foi matéria dos mais acalorados debates, sobretudo na seara das contratações públicas.

Um dos pontos que mais chama atenção é o do valor da causa no mandado de segurança. O remédio constitucional, previsto na Carta Magna e regulado pela Lei nº 12.016/2009, tem rito sumaríssimo, guiado pela celeridade, simplicidade, além de possuir caráter residual, valores que se refletem em suas especificidades, como a necessidade de prova documental pré-constituída e a ausência de condenação em decorrência da sucumbência (artigo 25 da Lei nº 12.030/2009, Súmulas 512 do STF e 105 do STJ).

Ocorre que litigar é dispendioso e, no mais das vezes, desgastante. Diariamente, empresas e particulares têm sua saúde financeira — e emocional — comprometida pelo uso leviano do processo. Não pode o mandado de segurança ser um remédio a livre disposição dos licitantes sem que haja a cominação dos devidos custos decorrentes da consequência do fato de se socorrer, por comprovada má-fé, do aparelho do Judiciário.

Por se tratar de uma pretensão de fundo constitucional, que visa coibir ato abusivo e ilegal praticado por autoridade administrativa contra direito líquido e certo, à ação mandamental não se revela natural atribuir um elevado valor: o bem da vida perseguido não é o recebimento de pecúnia, como sói ocorrer em ações indenizatórias ou de cobrança. Ao fim e ao cabo, a principal e imediata finalidade do impetrante é fazer cessar ato ilegal ou abusivo, “não amparado por habeas corpus ou habeas data (artigo 5º, LXIX, CF/1988), por meio de sua suspensão e anulação.

Acontece que o rito que instrumentaliza o Mandamus não se exaure com a suspensão/manutenção do ato combatido, nem com o fim da fase de conhecimento pela prolação da sentença. E, assim como em outras searas, é mais do que corriqueiro o uso estratégico do processo com o fim de protelação, para atingir finalidades diversas daquelas que, naturalmente, devem ser suportadas pelo remédio constitucional.

A grande questão é que o sistema normativo que regula o mandado de segurança, orientado pela simplicidade, pela celeridade e pela excepcionalidade, não previu mecanismos específicos para coibir abusos, que, geralmente, têm como parâmetro o valor conferido à demanda, a exemplo da multa por litigância de má-fé ou mesmo da multa em decorrência da oposição de embargos de declaração de conteúdo nitidamente protelatório.

Muito embora seu artigo 25 tenha garantido a “aplicação de sanções no caso de litigância de má-fé”, fazendo uma referência indireta à normatização da matéria pelo CPC/2015, a Lei nº 12.016/2009 não impôs a quantificação do valor da causa como condição do Writ. Tanto que ainda é comum que essas ações tenham um salário mínimo como valor da causa, o que se atribui “para efeitos meramente fiscais”.

A imposição de quantificação precisou ser conferida pelos tribunais pátrios e pela jurisprudência mais atual do Superior Tribunal de Justiça, a partir da aplicação subsidiária do CPC/2015 naqueles casos em que o valor da causa pode ser quantificado, tal como no manejo do remédio contra supostos atos ilegais e abusivos em processos licitatórios e de contratações públicas.

Em 2019, por decorrência do julgamento do mandado de segurança nº 25.474/DF (2019/0291643-1), a Corte Superior chegou a aplicar a pena por litigância de má-fé ao Impetrante, considerando que o remédio constitucional havia sido empregado para atingir finalidades protelatórias, não toleradas pela excepcionalidade que o rege. Em tal julgado, o Impetrante também havia oposto embargos de declaração, que foram considerados protelatórios pela 4ª Turma do STJ, com aplicação da multa prevista no artigo 1.026, § 2º, do CPC. A Corte nada mais fez do que reafirmar as finalidades normativas do instituto e a necessidade de combater a utilização aventureira do remédio constitucional.

Não é por outro motivo que, no rito dos juizados especiais instaurado com a Lei nº 9.099/1995, apesar de a regra, no primeiro grau, ser a do não cabimento de “custas, taxas ou despesas” (artigo 54) nem de sucumbência (artigo 55), o valor da causa deve refletir o proveito econômico pretendido, ainda que seja a declaração do modo de ser de uma relação jurídica. Os critérios da simplicidade, da economia processual e da celeridade, que regem os juizados, não são diferentes daqueles que orientam o mandado de segurança. Esses critérios normativos também permitem aplicar, dedutiva e analogamente, algumas conclusões ao rito da Lei nº 12.016/2009.

Não só para determinar a competência dos juizados, limitada às causas de até 40 salários-mínimos, mas, principalmente, para servir como parâmetro às custas e à sucumbência em casos de litigância de má-fé e de recursos, a devida quantificação do valor da causa é um instrumento que garante a própria dignidade da Justiça e a segurança jurídica no processo, refreando demandas, recursos e atos processuais aventureiros.

Como se trata do único mecanismo previsto na Lei nº 12.016/2009 para coibir o uso arbitrário do processo, a condenação por litigância de má-fé, sempre dependente do valor da causa, traduz-se em instrumento de controle extraprocessual, como uma maneira de preservar os demais interesses afetados pela pretensão deduzida no processo, como os custos financeiros, emocionais, empresariais, decorrentes do manejo de um mandado de segurança inegavelmente incabível.

Nesse contexto, por decorrência do sistema normativo constituído pela legislação aplicável e pela jurisprudência firmada pelo STJ, a correção do valor da causa, em mandado de segurança ajuizado em licitações e contratações públicas, com base no artigo 292, § 3º, do CPC/15, é medida que se impõe como um poder-dever do julgador, para garantir que as finalidades do remédio constitucional sejam observadas do início ao fim do processo.

Logo, ao que se percebe, esse vem sendo o entendimento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ao ensejo de ponderar o valor que deve ser atribuído aos mandados de segurança que visam combater os atos administrativos praticados no curso do processo de contratação pública, impõe que tal valor deve refletir o proveito econômico almejado pela Impetrante. Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL. DEMANDA INDENIZATÓRIA. VALOR DA CAUSA. PROVRITO ECONÔMICO PERSEGUIDO. EXCESSIVIDADE DO QUANTUM. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 283 DO STF. AFASTAMENTO. 1. “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos aos requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo nº 2). 2. O Superior Tribunal de Justiça consolidou orientação de que o valor da causa deve corresponder ao do seu conteúdo econômico, considerado como tal aquele referente ao benefício que se pretende obter com a demanda, conforme os ditames dos artigos 258 e 259, I, do Código de Processo Civil/1973. 3. Hipótese em que a Corte Regional manteve o valor atribuído à causa, nos autos da ação de indenização proposta pela Associação dos Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais de Altamira/PA, em razão da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, por compreender que, se a demanda pretende a condenação da agravante ao pagamento de perdas e danos, pelo suposto prejuízo que a construção da usina causou à atividade comercial do promovente, “o natural é que os demandantes atribuam à causa um valor econômico compatível com o proveito indenizatório que pretendem”. Incidência da Súmula 83 do STJ. 4. Reconhecer a irrazoabilidade do valor arbitrado esbarra no óbice da Súmula 7 do STJ. Precedentes. 5. Carece de prequestionamento a tese de que os demandantes, ora agravados estariam “tentando a sorte”, pois, litigando sob o manto da justiça gratuita, não sofreriam o ônus da sucumbência, porquanto não examinada no julgado impugnado, o que faz incidir na espécie o óbice da Súmula 282 do STF. 6. Afastado o óbice da Súmula 282 do STF, empregado na decisão empregada, pois demonstrado o rebate do fundamento da falta de interesse recursal em impugnar o valor da causa. 7. Agravo interno parcialmente provido, apenas para afastar a Súmula 283 do STF [1].

O posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, que vem sendo seguido por outros tribunais do país [2], é, inquestionavelmente, a melhor linha de interpretação, porque visa restringir a impetração de mandados de segurança incomportáveis, garantindo a higidez das decisões tomadas na seara administrativa.

Bem se veja, ainda, que, conforme já noticiado acima, tanto a legislação anterior, como também a recente Lei nº 14.133/2021 preveem a utilização de recursos administrativos e pedidos de reconsideração, que, por possuírem efeito suspensivo, impedem, por si sós, a utilização do remédio constitucional.

À guisa de conclusões, a preferência do legislador pela utilização residual do mandado de segurança vem sendo confirmada pela jurisprudência, cabendo ao Impetrante avaliar, caso a caso, se é viável a impetração do Mandamus e, aderindo a essa opção, seja consciente das consequências que podem advir pela indevida utilização do aparato jurisdicional, notadamente multa, exclusive se não houver a comprovação por litigância de má-fé.

[1] (STJ – AgInt no AREsp: 1462304 PA 2019/0062453-3, relator: ministro GURGEL DE FARIA, Data de Julgamento: 26/10/2020, T1 – 1ª TURMA, Data de Publicação: DJe 26/11/2020)

[2] Nesse sentido, veja-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: (TJ-MG – AC: 10000191207166001 MG, Relator: Maurício Soares, Data de Julgamento: 23/04/2020, Data de Publicação: 27/04/2020)


 é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em Administração, sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

Raíi Paiva é mestrando em Fundamentos Constitucionais do Direito, professor e advogado no do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.