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Ao Poder Público não é conferida a autonomia da vontade ínsita aos particulares. Por certo, a vontade da Administração Pública, no tocante aos seus negócios jurídicos com terceiros, é formada mediante um plexo de atos e procedimentos administrativos (licitação) que deságuam na formação do contrato “administrativo”. Tal processo objetivo de escolha pode, em certa medida, por uma série de razões, sempre previstas em lei, ser afastado.
A despeito de ser uma fuga à regra constitucional quanto ao dever de licitar (art. 37, XXI, da CF/88), tais contratações sem licitação sempre foram vistas com as mais contundentes ressalvas, o que se justifica em decorrência de sua própria excepcionalidade – foge à natureza humana adaptar-se à atipicidade, não sendo habitual absorver uma restrição como normalidade.
Dentre as hipóteses de contratação direta, a mais proeminente é a dispensa de licitação em face da emergência, fenômeno este que decorre ora de consequências naturais, no mais das vezes imprevistas, ora em decorrência da desídia[1] humana que, ainda que provocativa da emergência, não lhe suprime o estado emergencial apto à contratação direta. O que é emergente não pode esperar, principalmente diante do burocrático processo de contratação pública previsto na legislação brasileira.
Imbuído neste sentido e ampliando a possibilidade da emergência já prevista no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, com as alterações promovidas pelas Medidas Provisórias nº 926/20 e nº 951/20, preceituou, em seus artigos 4º e 4º-A, que é dispensável a licitação para a aquisição de bens, novos e usados, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Não restam dúvidas de que há uma concessão legal quanto à contratação sem licitação, desde que se trate de emergência, presumida segundo a Lei nº 13.979/20, causada pelo coronavírus.
Dito de outro modo, tanto as clássicas urgências já previstas pela legislação comum (art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93), como, também, as agora decorrentes da pandemia, podem ser objeto de contratação sem o prévio processo de escolha entre competidores; leia-se, elege-se o contratado diretamente (bingo!).
Eis que, a partir deste cenário, alguns problemas passaram a existir, destacadamente em decorrência de interpretação normativa. Em outras palavras, a problemática veio a residir em como interpretar a permissão outorgada pelo legislador, sobretudo em razão da flexibilização de determinados pontos, razoavelmente rígidos, inerentes às contratações públicas, dentre os quais um dos mais relevantes é o da possibilidade de aquisição do objeto por valor acima do praticado no mercado.
Veja-se, portanto, sem prejuízo de outras maleabilidades insertas no documento normativo (como, por exemplo, a possibilidade de contratar empresa declarada inidônea; a dispensa de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista e o afastamento da prévia estimativa de preço do bem ou serviço), que se sobrepõem três pontos emblemáticos na contratação emergencial possibilitada durante a crise ocasionada pela Covid-19: o primeiro diz respeito à possibilidade de contratação com preço acima do preço de mercado; o segundo – que não deixa de ser a causa do primeiro problema – está relacionado às excessivas contratações emergenciais quando existentes situações caracterizadas pela ampla competividade; e o terceiro, a realização de aquisições que transcendam o objeto indispensável ao enfrentamento da emergência, ou seja, que venham a ultrapassar a dimensão e os limites da preservação dos valores em risco.
Mas como avaliar todos estes pormenores diante de um ambiente tão caótico e desordenado? Por que proceder à contratação com base na Lei nº 13.979/20[2]? Que razões justificam sua utilização? Quais cautelas são inafastáveis?
Tanto o procedimento licitatório (regra geral) quanto o de contratação direta (exceção) caracterizam-se como ato jurídico-administrativo formal, a exigir que a instrução processual, seus atos e documentos obedeçam aos preceitos da ordem jurídica, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal dos agentes públicos que os descumpram.
Nada obstante, tem-se notícia, com inquietante frequência e em tempos de normalidade contratual, de órgãos e entidades da administração pública brasileira que mais contratam diretamente que mediante licitação, evidente e equivocada inversão entre a regra geral e a sua exceção. Como também ainda se acha quem imagine que a contratação direta prescinde de processo administrativo para formalizar-se, já que se faz sem licitação.
A justificativa do preço, requisito da contratação direta previsto no art. 26, parágrafo único, inciso III, da Lei nº 8.666/93, não é afastada nas contratações emergenciais decorrentes da Covid-19. Contudo, nesta situação de emergência, exsurge diante do gestor público um fator anormal: a esquizofrenia da lei da oferta e da procura.
Mesmo o melhor gestor, aquele imbuído da mais profícua vontade de realizar o melhor com a menor quantidade de recursos possíveis (economicidade), encontrar-se-á preso a um desvirtuado modelo de mercado que não é encontrado em circunstâncias frequentes.
Há, inquestionavelmente, uma situação patológica a ser tratada e, diante desta patologia, a atividade do gestor torna-se complicada. Tratemos, pois, do primeiro ponto: o que pode, em tempos de pandemia, ser considerado preço acima do de mercado ou, nos termos da lei, aquisições por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços?
Usemos um simplório exemplo relacionado ao valor de máscaras de proteção facial: avalia-se, primeiramente, o custo de uma caixa desse produto antes da pandemia; instalado o caos, qual é seu o valor atual?
Não há resposta fácil, sublinhe-se, primeiro porque o mesmo poderá não mais existir no mercado; segundo, porque, acaso existente, seu preço poderá elevar-se em quantitativo de vezes superior ao valor original. Logo, não será tarefa fácil determinar o que seja sobrepreço diante do quadro apresentado.
É quase impossível, na prática, determinar, hermeticamente, o valor de um bem ou serviço em uma situação de total turbulência, onde o caos freia a corriqueira ordem da oferta e da procura.
É impraticável afirmar, com margem de certeza peremptória, que um bem adquirido por um valor mais elevado esteja fora do padrão de mercado e que o agente público responsável pela aquisição tenha, necessariamente, de ser responsabilizado, por quê?
Porque, em tal situação, pode aquele bem ter sido a única e real possibilidade de aquisição e, para não ser ineficiente (leia-se, evitar mortes), o agente público teve de agir naquelas condições.
Mas daí o leitor poderá imaginar o cenário oposto, em cujas lápides preponderam a corrupção e o aproveitamento. Sim, a par da dificuldade quanto à sua identificação (eis aí, por exemplo, a dificuldade quanto ao conceito de “preço de mercado”), este panorama existe e carece, impostergavelmente, ser reprimido, quanto mais quando se percebe que o desvio da finalidade pretendida pelo legislador é a consequência do principal fenômeno, é dizer, a excessiva efetivação das contratações emergenciais – neste quesito, o brasileiro tem expertise de sobra.
Se havia mais de uma possibilidade (mais de uma empresa com preço abaixo do contratado; uma ou mais empresas que poderiam ser contratadas, afastando-se a contratação da inidônea; outras tantas empresas sem quaisquer restrições trabalhistas e fiscais etc.) e, ainda assim, o gestor entendeu por contratar diretamente, um desafio maior se aproxima: o surto de contratações emergenciais!
Assim sendo, a questão não está no permissivo legal, tampouco nas soluções apresentadas, mas no excesso, como se todo e qualquer tipo de contratação possa ser efetivada em face da pandemia ocasionada pela Covid-19. Não, não é este o objetivo da norma, pois não se curam doenças com doses alopáticas. Da pandemia viral não podem decorrer outros efeitos pandêmicos.
Certo é que, ao gestor, seja em tempos normais, seja agora, gerindo suas contratações em situação atípica, incumbe demonstrar a legalidade e regularidade da despesa e execução do objeto contratado.
Tal dever, insculpido no art. 113 da Lei nº 8.666/93, fortemente mantido nas contratações da Lei nº 13.979/20, derroga a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos relativos à execução da despesa pública, porquanto transfere para a autoridade que os expediu o ônus de comprovar sua regularidade se esta for impugnada pelos órgãos de controle interno ou externo.
[1] DOTTI, Marinês Restelatto. Contratação emergencial e desídia administrativa. Revista do Tribunal de Contas da União. Ano 38. Nº 108. Jan/Abr 2007. P. 51-62
[2] Notícia veiculada no Portal de Compras do Governo Federal informa que já foram investidos mais de R$ 703 milhões em compras públicas para o combate à Covid-19 desde o dia 6 de fevereiro de 2020. Disponível: <https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1290-compras-publicas-para-o-combate-a-covid-19-ja-movimentaram-703-milhoes>.
GUILHERME CARVALHO – Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.
MARINÊS RESTELATTO DOTTI – Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da obra: Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência.