O mito do planejamento exorbitante na Lei nº 14.133/2021

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Uma das grandes falhas existentes nas mais variadas legislações que antecedem a Lei nº 14.133/2021 está relacionada à deficiência no planejamento das contratações públicas. A par dos apelos doutrinários e jurisprudenciais, notadamente dos órgãos de controle, quanto à precariedade na programação das licitações, a lacuna normativa foi suprida em excesso, criando uma exageração que, na prática, pode inviabilizar a finalização do próprio processo licitatório.

Embora planejar não deva ser uma temática estranha à atividade administrativa, porquanto já regulado desde o Decreto-Lei nº 200/1967 (artigo 6º, I), a multiplicidade de regras de planejamento tende a retirar parcela da autonomia administrativa, inviabilizando notoriamente o processo licitatório. Logo, é preciso desde já direcionar a dimensão normativa concedida ao planejamento, que deve rigorosamente ser deferente às particularidades de quem licita e contrata.

Digo de nota que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos menciona o termo “planejamento” em 12 oportunidades; certamente, um tema importante e que mereceu a devida atenção do legislador, quando, desde o artigo 5º, acentua o princípio do planejamento como um dos dirigentes do processo de contratação pública.

Há, inegavelmente, uma tendência normativa em concretizar o liame existente entre a fase do planejamento da licitação e a fase de execução dos contratos, evitando a realização de licitações indesejadas e impassíveis de serem cumpridas, o que justifica o enaltecimento quanto ao planejamento estratégico, que contextualiza o estabelecimento de metas e o empreendimento de ações, com a melhor mobilização dos escassos recursos, por meio de metodologias que objetivam a consecução do sucesso do processo como um todo, especialmente do processo licitatório.

É lugar comum, portanto, que planejar deve ser um dos objetivos principais da Administração Pública. Inquestionável, sob qualquer aspecto, que o planejamento contribui para boas práticas de governança, sendo mecanismo de sufrágio às medidas anticorrupção, motivo pelo qual, ao estabelecer os objetivos do processo licitatório, o legislador também ousou quanto à participação, no planejamento, de todos os atores envolvidos no processo de contratação. Nesse sentido, eis a literalidade do parágrafo único do artigo 12 da Lei nº 14.133/2021:

“A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”.

Ainda no tocante ao planejamento, uma cautela especial foi outorgada ao estudo técnico preliminar, a primeira etapa que consolida o planejamento nas contratações, definido pelo legislador como “documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação”.

O estudo técnico preliminar é alçado, no contexto da Lei nº 14.133/2021, como elemento indispensável para a deflagração de uma licitação, consoante disposição do artigo 18, I, c/c §1º, desse mesmo dispositivo legal. Logo, o estudo técnico preliminar “deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação”, devendo conter vários elementos, alguns deles imprescindíveis, segundo expressa disposição do §2º do artigo 18.

Incontestável, portanto, que a fase preparatória da licitação é, por assertiva intenção normativa, caracterizada pelo planejamento, e deve conter todos os elementos descritos nos 11 incisos do artigo 18, entre os quais se destaca, sobretudo, o estudo técnico preliminar.

Há uma evidente atenção do legislador em reduzir os impactos decorrentes da ausência de planejamento, quando, por exemplo, estabelece, no artigo 12, VII, o plano de contratação anual, que tem por objetivo “(…) racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”, radiando o dever de diligência que recai sobre os agentes públicos.

Quando se refere às compras (artigo 40), novamente a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos exalta o planejamento, observando, sempre, entre outros requisitos, a expectativa de consumo anual. “De outro lado, o artigo 40 da Lei nº 14.133/21 tende a promover a racionalização de recursos públicos, evitando-se licitações sucessivas (ou quiçá contratações diretas) para adquirir produtos ao longo de meses, por conta de não se ter bem planejadas as necessidades do ano, especialmente diante das aquisições que são certas” [1].

Diversas normas distribuídas ao longo da Lei nº 14.133/2021 equalizam o dever de planejamento, ampliando a eficiência e a economicidade, além de evitar o desperdício de dinheiro público. Para além, o planejamento dissipa a malfadada contratação emergencial, a qual, nada obstante permissivo legal, deve ser evitada, à luz da interpretação conjunta do artigo 73 da Lei nº 14.133/2021 e do artigo 337-E do Código Penal Brasileiro.

Deverá fazer parte da agenda de qualquer Administração Pública uma contratação programada, afastando distopias circunstanciadas e desgarradas do modelo gerencial almejado pela Constituição Federal. Todavia, julgamentos (positivos e negativos) podem e devem ser feitos.

A crítica ao ideário normativo parte não apenas do excesso de normas que abordam o assunto, amiúde extenuantes, como também da impossibilidade prática de concretização de todo o dever de planejamento que é acobertado pelo manto normativo e que impele, em decorrência do conteúdo imperativo da lei, a obrigatoriedade de obediência irrestrita às normas.

Por essa razão, o planejamento das contratações públicas deve retratar a particularidade de cada órgão ou entidade contratante, respeitando as estruturas de capacidade local, bem assim os recursos humanos existentes. Sendo assim, a quimera de reposicionar os normativos da União nem sempre se apresenta como a melhor medida. É preciso evitar a “catequese normativa da União” [2].

Definitivamente, houve significativo avanço da legislação nesse sentido. A problemática reside em hiperbolizar o planejamento, na busca incessante de uma programação demasiada, inclusive no que concerne às contratações públicas cujo objeto dispensa um excesso de idealização, a qual, se não passível de aplicabilidade prática, tende a distorcer o escopo normativo.

[1] HEINEN, Juliano. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos – Lei nº 14.133/2021. Salvador: Juspodivm. 2021, p/ 231.

[2] https://www.conjur.com.br/2020-nov-27/opiniao-licitacoes-brasil-catequese-normativa-uniao.

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