O contrato na Lei nº 14.133/2021: Aproximação ao Direito Privado?

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É uma platitude assinalar que, para a Administração Pública, a liberdade de contratar é mitigada, sobremais porque o elemento volitivo que perfectibiliza a relação contratual não emerge naturalmente da vontade das partes, mas decorre da lei, com precedência expressa de um procedimento administrativo próprio para a escolha do contratado, denominado licitação. Logo, salvo as hipóteses legalmente previstas de contratação direta, a relação jurídica contratual já nasce viciada quando inexistente procedimento objetivo de escolha.

Por tais razões, os contratos firmados com a Administração Pública são, invariavelmente, contratos por adesão, em que pouco ou nada o particular opina quanto aos seus termos, o que é facilmente comprovável, dentre outros motivos, pelo fato de a minuta contratual ser elemento anexo ao instrumento convocatório (destacadamente inciso VI do artigo 18 da Lei nº 14.133/2021[1]). Portanto, não há, via de regra, margem para o particular discutir com a Administração contratante os termos iniciais do contrato, fato este que decorre do chamado regime jurídico-administrativo, cujas amarras se encontram fincadas em normas de Direito Público.

Ocorre que o regime jurídico-administrativo não elide a possibilidade de utilização de normas de Direito Privado, nada obstante a existência de um contrato denominado “administrativo”. Interessante notar que o preâmbulo da Lei nº 8.666/1993 preceitua, tão somente, que tal normativo “Regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências”. Não há, ao menos no exórdio da referida Lei, qualquer atribuição do qualificativo “administrativo” à figura do contrato, muito embora o termo apareça em diversas partes do diploma, a iniciar pelo artigo 1º.

Diferentemente da previsão contida na Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 14.133/2021 deixa claro, em seu pórtico, um nome sugestivo: “Lei de Licitações e Contratos Administrativos”. A despeito de a ementa consignar o epíteto “administrativo”, há, na Nova Lei, uma maior aproximação à utilização de normas do Direito Privado, o que atesta a ideia de que tais contratos tendem a privilegiar ainda mais a proeminente posição do contratado, significando um favorável avanço.

Mesmo assim, não é possível assegurar, sem inquietantes incertezas, que hajam sido suprimidas dos contratos formados com a Administração Pública as ditas cláusulas exorbitantes[2]. Todavia, através de uma simples leitura do texto da Nova Lei, já se percebe que tais cláusulas não encontram o mesmo suporte que continham na Lei nº 8.666/1993. Para além, as cláusulas exorbitantes passam, na Lei nº 14.133/2021, a conviverem, em maior incidência, com institutos típicos do Direito Privado, como os métodos alternativos à resolução de conflitos[3].

Diante de tais ponderações, é possível deduzir que o conceito fundante de contrato “administrativo”, no qual a potestade da Administração Pública é sobressaliente, foi abrandado na Nova Lei de Licitações? Dito de outro modo, há uma maior aproximação, na Lei nº 14.133/2021, entre o contrato “administrativo” e os contratos privados?

Pelas mais variadas razões — algumas acima já expostas —, entendemos que sim. Isso não significa, por um lado, que tenha havido uma derrogação do regime jurídico-administrativo; por outro, é inegável o ânimo legislativo em não fechar as portas para a flexibilização à figura do contrato firmado com a Administração Pública, notadamente quanto ao ponto em que a Lei nº 8.666/1993 era consideravelmente inflexível: o reequilíbrio econômico-financeiro, o qual, na Nova Lei, passa a ser objeto expresso de possível negociação entre as partes, inclusive de forma prévia, quando da fixação da matriz de riscos (artigo 103, da Lei nº 14.133/2021).

Essa consensualidade, que oportuniza aos contratos da Lei nº 14.133/2021 uma maior utilização de normas de Direito Privado, não engranza expressiva e espantosa inovação, sobretudo porque outros dispositivos normativos já caminhavam neste sentido, imperiosamente o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb). Tal afirmação é tão evidente que, na Nova Lei, há a menção expressa à utilização dos dispositivos da Lindb (artigo 5º).

Nota-se, assim, uma certa aproximação da Lei nº 14.133/2021 com os institutos da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais). No que mais interessa, cumpre ressaltar que a Lei das Estatais se aplica, igualmente, à Administração Pública, embora trate de Administração Pública Indireta. Em outras palavras, inexistem razões plausíveis para não empregar uma maior maleabilidade negocial aos contratos firmados sob a égide da Nova Lei de Licitações e Contratos “Administrativos”.

Conquanto tenha o legislador, a nosso sentir, optado por aproximar os contratos da Lei nº 14.133/2021 aos contratos da Lei das Estatais, deve existir, por parte da Administração Pública, a incorporação de tal desígnio normativo, sob pena de tornar letra morta as auspiciosas aspirações normativas que deságuam numa maior oportunidade de conferir concretude aos contratos firmados com a Administração Pública, nomeadamente à sua fiel execução.

Para além de configurar uma descortesia com o Legislativo — assaz inovador neste quesito —, não é producente o agente administrativo atuar de modo a inviabilizar a materialização dessas esperançosas normas privadas que auxiliam na efetivação de eficientes práticas administrativas. É dizer, o avanço legislativo será ineficaz se não houver um compasso do exercente da função administrativa no mesmo sentido.

Igualmente, para que haja a solidificação de tão distinto intento normativo, deve existir, também, uma maior margem de tolerância por parte dos órgãos de controle, o que não significa condescendência com atos espúrios e distorcidos da legalidade que impera na atividade administrativa. É desejável, porém, que os órgãos de controle proporcionem ao gestor uma maior liberdade de formas quanto às tratativas contratuais, fomentando e estimulando verdadeiros concertos administrativos quando as condições singulares do contrato firmado com a Administração Pública assim o exigirem.

Fixados tais pontos, aos entusiastas da Nova Lei de Licitações e Contratos “Administrativos” remanescem os aplausos, sobretudo diante da sobranceira e autêntica possibilidade de efetivar, pragmaticamente, uma maior eficiência às relações contratuais em que figura, em um dos polos, a Administração Pública.

[1] Na Lei nº 8.666/1993, art. 40, § 2º, III.

[2] Importante destacar que, mesmo na Lei de Estatais, ao menos para as prestadoras de serviço público, há uma certa incidência das cláusulas exorbitantes, necessárias à manutenção das próprias prerrogativas da Administração Pública.

[3] Tema já abordado nesta mesma Coluna. https://www.conjur.com.br/2021-abr-30/licitacoes-contratos-medidas-conciliatorias-lei-licitacoes.

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