EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL

E A PARTICIPAÇÃO EM CERTAME LICITATÓRIO1

Existe grande celeuma quanto à possibilidade de empresas em recuperação judicial participarem de licitação. Apesar de não haver vedação legal expressa para tanto, a Lei de Licitações (nº 8.666/93) não trata especificamente a questão, uma vez que anterior à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (nº 11.101/05). A doutrina diverge neste ponto e, tendo em vista a teleologia da Lei recuperativa de empresas, que prioriza a manutenção da unidade produtiva e não mais a sua extinção, impõe-se abordar a possibilidade de empresas em processo de recuperação judicial contratarem com o Poder Público.

FINALIDADE DA LEI Nº 11.101/05

Antes mesmo de mencionar a finalidade da nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, importa tecer algumas considerações sobre a função social da empresa e o papel que esta desempenha na sociedade. A empresa não é um mero instrumento de satisfação dos interesses de seus proprietários, devendo servir aos interesses da própria sociedade. É um organismo vivo e apresenta uma função social, devendo impulsionar a economia e ser fonte de renda e de riqueza.

É, também, geradora de empregos, proporcionando um papel social importantíssimo. A empresa desempenha, sem dúvidas, inquestionável função social, fortalecendo e mantendo o ciclo de circulação de riquezas e renda.

O princípio da função social da empresa reflete-se, por certo, no princípio da preservação da empresa, que dele é decorrente: tal princípio compreende a continuidade das atividades de produção de riquezas como um valor que deve ser protegido, sempre que possível, reconhecendo, em oposição, os efeitos deletérios da extinção das atividades empresariais que prejudica não só o empresário ou sociedade empresária, prejudica também todos os demais: trabalhadores, fornecedores, consumidores, parceiros negociais e o Estado.2

A função social apresenta-se, assim, como um dever dos empresários de harmonizarem suas atividades com os interesses sociais, promovendo o desenvolvimento econômico em geral, em obediência aos deveres constitucionalmente impostos.

A recuperação judicial não é um sucedâneo do instituto da concordata. A finalidade da novel legislação falimentar vai ao encontro da preservação da empresa, e não de sua quebra. Inviabilizar a contratação com o Poder Público pode, em muitos casos, propiciar o fechamento total da unidade produtiva, sobretudo quando a atividade desenvolvida tem como principal cliente o próprio Poder Público.”

A Lei nº 11.101/05 veio ao lume desse interesse, preservando a empresa, um dos principais pilares da economia moderna, eis que o vetusto Decreto-Lei nº 7.661/45 já não atendia às necessidades do hodierno universo empresarial e creditício. “Agora, trata-se de dar condições às empresas viáveis de se manterem vivas, criando-se a opção recuperatória”.3

Os institutos da função social da empresa e da preservação da unidade produtiva vieram ao encontro da nova legislação, modificando a visão sobre o Direito Falimentar e criando mecanismos de reorganização da empresa. Portanto, o foco do legislador residiu na recuperação da empresa em crise.

Surgiu, pois, a Lei nº 11.101/05 com o objetivo de equilibrar interesses, sejam os da empresa em dificuldades que ainda se sente em condições de gerar rendas e empregos – em atendimento à homenageada função social que deveria encerrar a sua existência – sejam das diferentes classes de credores, que esperam da legislação o resguardo de maiores garantias e de efetivo pagamento de seus créditos. Denota-se, pois, que ao legislador coube a tarefa difícil de harmonizar dois direitos conflitantes, existindo um limite tênue entre a recuperação da empresa e a recuperação do crédito.4

Em verdade, a recuperação judicial tem o objetivo de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, para permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa. Assim, preserva-se a sua função social e há estímulo à atividade econômica.

A LEI Nº 11.101/05 E A LEI Nº 8.666/93

O art. 31, inciso II, da Lei de Licitações admite a exigência de certidão negativa para falência e concordata. Quanto à recuperação judicial, não há qualquer menção. O regramento, quando enumera a documentação relativa à qualificação econômico-financeira das licitantes, estabelece:

Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á:

[…]. II certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física. (Grifou-se.)

Ocorre que o instituto jurídico da concordata já não mais é vigente, tendo sido substituído, parcialmente, pela recuperação judicial de empresas, respeitadas, com obviedade, as peculiaridades inerentes a cada um dos institutos. Até mesmo antes da edição da Lei nº 11.101/05, aludido dispositivo da Lei nº 8.666/93 já era debatido pela doutrina e jurisprudência com bastante veemência, estendendo-se os questionamentos, inclusive, à (im)possibilidade de participação de uma empresa em determinado certame quando da existência de processo falimentar sem trânsito em julgado.

Ocorre que, até 9 de fevereiro de 2005, a legislação que regia o processo falimentar no Brasil era o Decreto-Lei nº 7.661/45, o qual não previa a figura da recuperação judicial e extrajudicial das empresas, estabelecendo, unicamente, as figuras da falência e da concordata (preventiva ou suspensiva).

A Lei nº 8.666/93 foi promulgada sob a égide deste regulamento. Todavia, doze anos após a promulgação da Lei de Licitações, a Lei nº 11.101/05 criou as figuras da recuperação judicial e extrajudicial, cujo objetivo ultrapassou, sumamente, o desígnio da antiga concordata. Na verdade, no Brasil, a inexistência de uma eficiente legislação falimentar e recuperativa de empresas era causa de fuga de capital estrangeiro, pois outros países possuíam um apa- rato legislativo mais interessante, o que ocasionava maior arrojo de novos investimentos.5

Portanto, o inciso II do art. 31 da Lei nº 8.666/93 não pode ser visto com olhar voltado para o retrógado Decreto-Lei nº 7.661/45, cuja teleologia divergia, às claras, da nova Lei recuperativa de empresas. Inclusive, os novéis institutos jurídicos criados – recuperação judicial e extrajudicial – não guardam total consonância com os institutos anteriores (concordata preventiva e suspensiva).

A análise do dispositivo legal previsto na Lei de Licitações não pode ser desvencilhada do objetivo central do instituto da recuperação: manter viva a empresa, produzindo e circulando riqueza.

Ressalve-se, acima de tudo, que boa parte das empresas tem nos contratos administrativos parcela representativa de suas receitas, devendo, portanto, o Poder Público cooperar com a sua recuperação. Há, contudo, doutrina em sentido contrário:

A recuperação judicial (e extrajudicial), mecanismo intro- duzido em substituição à antiga concordata, desperta aten- ção. Deve-se ter em vista que a recuperação judicial não é um mesmo nome para o mesmo instituto. Suas finalidades e seu regime jurídico são distintos dos da antiga concordata. No entanto, afigura-se que o entendimento dos efeitos da concordata sobre a contratação administrativa deverá ser aplicado à recuperação judicial.

Em primeiro lugar, mantém-se a presunção de insolvência relativamente ao sujeito que pleiteia a recuperação judi- cial. Esse é o aspecto fundamental que conduz à inviabili- zação da contratação administrativa. Esse é o fundamento pelo qual se reputa que também a recuperação extrajudicial se traduz em impedimento à habilitação para participar em licitação.6

Ademais, a Lei nº 11.101/05 é silente quanto ao questio- namento, eis que apenas estabeeceu, nos casos de empresas que sofreram processo falimentar, que “a decretação da falência das concessionárias de serviços públicos implica extinção da concessão, na forma da lei” (art. 195).

“Impossibilitar uma empresa de participar de determinado certame com base em presunção de insolvência é, sem sombra de dúvida, ilegal, eis que a Lei nº 8.666/93, muito menos a Lei nº 11.101/05, assim o determinaram.”

Uma interpretação, a contrario sensu, do art. 195 da Lei nº 11.101/05 induz, até mesmo, à possibilidade de empresas em recuperação judicial e extrajudicial contratarem com o Poder Público, uma vez que não há restrição, neste dispo- sitivo legal, quanto a tal ponto específico.

Uma análise do art. 52, inciso II, da Lei nº 8.666/93 per- mite, contudo, uma leitura diversa:

Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato:

[…]

II – determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei.

O Superior Tribunal de Justiça não possui julgado especí- fico quanto ao tema. Infere-se, através de pesquisa no sítio da Corte, um leve posicionamento no sentido de impedir empresas em processos de concordata ou falência de con- tratarem com o Poder Público.7 Saliente-se, todavia, que os julgados apurados referem-se à antiga legislação, não abarcando o instituto da recuperação de empresas, cujo objetivo, como já passado, é diverso.

Importa mencionar que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.969/12, de autoria do Deputado Carlos Bezerra, visando alterar o art. 31 da Lei nº 8.666/93, e o art. 52 da Lei nº 11.101/05, para permitir a participação, em licitações, de empresas em processo de recuperação judi- cial. Trata-se, como se nota, de forte tendência no sentido de permitir que empresas em recuperação contratem com o Poder Público.

POSSÍVEL ENTENDIMENTO SOBRE O TEMA

O certo é que duas linhas de posicionamento foram abertas sobre o tema. A primeira delas no sentido de invocar a recuperação judicial como um sucedâneo do instituto da concordata, posição com a qual não se concorda. A segunda, que parece ser mais consentânea com a realidade, encara a recuperação de empresas como um instituto totalmente diverso da concordata, não guardando com este tantas semelhanças. Não há tantos julgados nesse sentido. Todavia, é impor- tante mencionar que, a partir desse entendimento, por exemplo, uma empresa de manutenção predial em recuperação judicial conseguiu, na 1ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, liminar para participar de licitação promovida pela Prefeitura da capital. O Juiz Ronaldo Frigini entendeu, dentre outros pontos, que, apesar da exigência da Lei de Licitações, a Lei nº 11.101/05 tem como objetivo permitir que a empresa supere a crise pela qual está passando, concluindo: “Ainda que a Administração Pública deva ser tratada com certa diferença em relação ao particular, essa conduta não pode atingir quem também necessita do Poder Público

para manter-se em atividade”.8

Impossibilitar uma empresa de participar de determinado certame com base em presunção de insolvência é, sem sombra de dúvida, ilegal, eis que a Lei nº 8.666/93, muito menos a Lei nº 11.101/05, assim o determinaram.

Ora, se o legislador teve a oportunidade de modificar toda a matéria normativa concernente ao processo falimentar e de recuperação de empresas e não proibiu, expressamente, empresas em processo de recuperação judicial ou extra-judicial de contratarem com o Poder Público, é óbvio que intencionou a contratação.

Carlos Pinto Coelho Motta comunga do mesmo posicionamento.9 O autor sustenta sua posição com base no objetivo da nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, que é o de manter viva a unidade produtiva e permitir a continuidade da empresa.

Outra não é a opinião de Fernando Antônio Junior. Embora refira-se à antiga Lei de Falência e Concordata, o autor faz menção à Lei de Licitações para firmar que: “[…] a única interpretação do art. 31, inciso II, da Lei nº 8.666/93, compatível com o nosso ordenamento constitucional é a de que a simples indicação de ação de falência ou concordata em curso não tem o condão de inabilitar o licitante ou tornar inativo ou inválido o seu registro cadastral para fins de participação em licitações”.10

Assim sendo, muito embora haja fortes divergências quanto ao tema, conserva-se a opinião no sentido de que impossibilitar empresas em processos de recuperação judi- cial ou extrajudicial de contratarem com o Poder Público é ilegal, ofendendo, acima de tudo, o devido processo legal.

CONSIDERAÇÕES  FINAIS

Pelo que pôde ser observado, a recuperação judicial não é um sucedâneo do instituto da concordata. A finalidade da novel legislação falimentar vai ao encontro da preservação da empresa, e não de sua quebra. Inviabilizar a contratação com o Poder Público pode, em muitos casos, propiciar o fechamento total da unidade produtiva, sobretudo quando a atividade desenvolvida tem como principal cliente o próprio Poder Público. O Estado não pode, sob pena de total incongruência, editar um instrumento normativo com uma finalidade e, ao revés, quando de sua atividade administrativa (procedimento de contratação pública), inserir obstáculos que, não obstante não encontrarem amparos legais, ainda assim não se coadunam com o objetivo maior da Lei nº 11.101/05: proporcionar a recuperação dos empresários e sociedades empresárias que se encontram em crise.

Já se tem notado avanços nesse sentido, em especial diante de algumas decisões judiciais que analisaram o tema, bem assim do Projeto de Lei que permite extirpar do mundo jurídico essa diversidade de posicionamento. Contudo, tratam-se estas, ainda, de meras expectativas, carecendo de postura mais firme do Poder Judiciário para que se enfrente o tema com profundidade suficiente que garanta maior estabilidade e segurança jurídica não só às empresas, como também ao próprio Poder Público.