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No dia 1º de abril do corrente, foi publicada e entrou em vigor a Lei nº 14.133/2021, que veio para substituir a antiga Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993), bem como a Lei nº 10.520/2002
(Lei do Pregão) e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).
Embora a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos já esteja em vigor, o seu artigo 193, II, estabeleceu o prazo de dois anos de transição até que aqueles outros regimes jurídicos sejam revogados definitivamente. Até lá, a Administração Públicas direta, autárquica e fundacional da União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão optar por utilizar uma ou outra legislação em seus processos de licitação.
Uma das inovações da Lei nº 14.133/2021 foi a não inserção no art. 75, que trata da contratação direta por dispensa de licitação, da hipótese prevista no inciso XXIV do art. 24 da Lei nº 8.666/1993, qual seja: “celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”.
E foi justamente o conteúdo desse dispositivo da Lei nº 8.666/1993 que levou o Tribunal de Contas da União, em resposta a consulta 1 que lhe fora formulada, a externar, por meio do Acórdão nº 1.406/2017 do Plenário, o entendimento de que “ao contrário do que ocorre com as organizações a sociedade civil de interesse público – OSCIPS, inexiste vedação legal, explícita ou implícita, à participação de organizações sociais qualificadas na forma dos arts. 5º a 7º da Lei 9.637/98, em procedimentos licitatórios realizados pelo Poder Público, sob a égide da Lei 8.666/1993, desde que o intuito do procedimento licitatório seja contratação de entidade privada para prestação de serviços que se insiram entre as atividades previstas no contrato de gestão firmado entre o Poder Público e a organização social”.
Na referida deliberação, o TCU entendeu que, no caso das OSCIPs, o impedimento à participação em licitações decorreria da incompatibilidade entre as obras, as compras e os serviços de que tratam os artigos 7º a 15 da Lei nº 8.666/1993 e os objetivos institucionais da OSCIP, consignados no termo de parceria a que alude o artigo 9º da Lei nº 9.790/1999 2. Decorreria, ainda, da inexistência de previsão legal de celebração de contrato para estabelecimento ou ampliação de vínculo entre a OSCIP e o poder público. Para o Tribunal, o vínculo de cooperação entre o poder público e a organização social (OS) é estabelecido por meio de contrato de gestão, que discrimina atribuições, responsabilidades e obrigações para o atingimento das metas coletivas de interesse comum nele previstas. Dessa forma, a partir da qualificação formal como OS e da celebração do contrato de gestão, a entidade privada estaria habilitada a celebrar contratos administrativos com o poder público, para execução de atividades previstas no contrato de gestão, conforme dispõe o artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/1993. Assim, não obstante a possibilidade de competição entre interessados em prestar o serviço à Administração, a esfera do governo que qualificou a OS teria a faculdade de contratá-la diretamente, sem competição com os demais interessados. E concluiu a Corte de Contas: “Ora, se é lícito contratar OS para prestar serviços de natureza mercantil, sem que sua proposta tenha sido submetida à disputa com os demais interessados, quanto mais legítimo seria como resultado de um procedimento competitivo público”.
No citado processo de consulta, a dúvida do consulente decorrera do teor do Acórdão nº 746/2014-TCU-Plenário, em que restou consignado o entendimento de que não haveria amparo legal para a participação de OSCIPs em licitações promovidas pela Administração Pública federal, quando atuassem nessa condição, todavia a Corte de Contas silenciara quanto à participação de Organizações Sociais. Para o TCU, a Lei nº 9.790/1999 permitiu que o Estado, ao qualificar uma pessoa jurídica como OSCIP, concedesse a essas entidades privadas benesses fiscais e a possibilidade de receberem verba pública para buscarem o atingimento das finalidades elencadas no artigo 3º daquele diploma legal, razão pela qual admitir que as OSCIPS participassem de licitações desvirtuaria o objetivo primordial para o qual foram criadas, qual seja, estabelecer cooperação com o poder público mediante a celebração do termo de parceria.
Esse mesmo entendimento em relação às OSCIPS fora ratificado por meio do Acórdão nº 1.175/2019 do Plenário do TCU, segundo o qual a celebração de Termo de Parceria para execução de serviços de atividades-meio, passíveis de serem licitados e prestados mediante contrato administrativo, não se coadunaria com as finalidades previstas nos artigos 3º e 9º da Lei nº 9.790/1999, configurando fuga à licitação. Isso porque a lei prevê como objetivo dos termos de parceria celebrados com OSCIPS a prestação de serviços públicos à sociedade, ou seja, a prestação de atividades finalísticas do Estado à população.
Quanto à participação, de forma geral, de associações civis sem fins lucrativos em licitações, deliberou o TCU, por meio do Acórdão nº 2.847/2019 do Plenário, no sentido de que ela não é vedada, mas só deve ser admitida quando o objeto da avença guardar conformidade com os objetivos estatutários específicos da entidade. Para o TCU, não se deve conferir interpretação literal e restritiva à expressão “para fins não econômicos ” contida no artigo 53 do Código Civil 3, haja vista que o artigo 54, IV, do mesmo código 4 dispõe que o estatuto das associações deverá obrigatoriamente indicar “as fontes de recursos para sua manutenção ”. Além disso, a Lei nº 8.666/1993, em seu artigo 24, XX, permitiria a contratação direta, por dispensa de licitação, “de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado ”, redação que possui semelhança com a do inciso XIV do artigo 75 da Lei nº 14.133/2021 5, admitindo-se a conclusão no sentido de que as disposições do artigo 53 do Código Civil não vedam a que a Administração Pública contrate associação civil sem fins lucrativos.
Recentemente o TCU, por meio do Acórdão nº 2.426/2020 do Plenário, ao se manifestar sobre o parágrafo único do artigo 12 da Instrução Normativa Seges/MPDG nº 5/2017 6, segundo o qual “não será permitida, em observância ao princípio da isonomia, a participação de instituições sem fins lucrativos em processos licitatórios destinados à contratação de empresário, de sociedade mpresária ou de consórcio de empresa ”, o TCU reforçou o seu entendimento de que a vedação à participação de instituições sem fins lucrativos em licitações alcança somente as entidades qualificadas como OSCIPs. De acordo com o Tribunal, a redação da IN Seges/MPDG nº 5/2017 estaria em desacordo com os entendimentos jurisprudenciais supracitados, além de inexistir lei disciplinando, de forma indistinta, a vedação de participação em processos licitatórios a essas entidades.
Considerando que a Lei nº 14.133/2021 não estabeleceu vedação expressa à participação de instituições sem fins lucrativos em processos licitatórios, bem como não foi incorporado ao seu texto o conteúdo do dispositivo da Lei nº 8.666/1993 (inciso XXIV do artigo 24) que levou o TCU a concluir pela possibilidade da participação de Organizações Sociais em licitações, é possível concluir que a vedação à participação de instituições sem fins lucrativos alcança apenas as OSCIPs e as Organizações Sociais participantes, nessa condição, de certames realizados sob a égide da nova Lei de Licitações.
1 De acordo com o artigo 1º, XVII, da Lei nº 8.443/1992, compete ao TCU “decidir sobre consulta que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno”. Conforme o parágrafo 2º desse mesmo dispositivo, a resposta à consulta a que se refere o inciso XVII “tem caráter normativo e constitui prejulgamento da tese, mas não do fato ou caso concreto”.
2 Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências.
3 Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.
4 Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá: (…) IV – as fontes de recursos para sua manutenção;
5 Art. 75. É dispensável a licitação: (…)
XIV – para contratação de associação de pessoas com deficiência, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgão ou entidade da Administração Pública, para a prestação de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado e os serviços contratados sejam prestados exclusivamente por pessoas com deficiência;
6 Dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
Como citar este texto:
CARVALHO, Guilherme; SIMÕES, Luiz Felipe. Como fica a participação de instituições sem fins lucrativos em licitações, como OSCIPS e Organizações Sociais, após a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021, Zênite Fácil, categoria Doutrina, 01 mai. 2021. Disponível em: http://www.zenitefacil.com.br. Acesso em: dd mmm. aaaa._
GUILHERME CARVALHO
Advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas e Ex-Procurador do Estado do Amapá. Bacharel em Administração. ([email protected])
LUIZ FELIPE SIMÕES
Advogado, pós-graduado em controle externo, mestrando em Direito Administrativo e auditor de controle externo do TCU. ([email protected])