AS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS E AS MARGENS DE PREFERÊNCIA: QUAL A VERDADEIRA VANTAGEM?

INTRODUÇÃO

A Lei no 12.349/2010 modificou sumamente a Lei no 8.666/1993 (que trata das contratações públicas no Brasil), imbuindo, como fundamento da licitação, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, além de ter acrescido parágrafos ao seu art. 3o, de modo a introduzir no Brasil o que se pode entender por margem de preferência nas contratações nacionais, com a intenção de atingir o novel fundamento da licitação, insculpido no caput deste mesmo dispositivo legal, é dizer, o desenvolvimento nacional sustentável.

É possível notar que, conforme a Lei no 12.349/2010, há uma modificação na estrutura

da licitação e as mudanças implementadas não são simples, considerando a criação da possibilidade de concessão da propalada margem de preferência como mecanismo de implementação do desenvolvimento nacional sustentável.

Porém, o objetivo do presente artigo é averiguar quais são as ligações existentes entre a estipulação de margem de preferência em contratações públicas para produtos nacionais com o desenvolvimento sustentável, bem assim quais os benefícios e verdadeiros impactos oriundos desse mecanismo.

1. O presente artigo é fruto do amadurecimento das ideias externadas em palestras proferidas em novembro de 2012 nas Universidades de Salamanca e Valência, Espanha.

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Trabalhar-se-á com base nas seguintes assertivas e indagações, todas, por certo, necessárias ao esclarecimento do tema: a) como mensurar os benefícios das medidas relacionadas à proteção do mercado local; b) com a margem de preferência, haverá interesse na participação de licitações por empresas estrangeiras; c) há ou não ofensa ao princípio da igualdade.

O artigo, em um primeiro momento, discutirá, ainda que superficialmente, a licitação sustentável, passando pelo conceito de sustentabilidade e destacando as principais modificações ocorridas na legislação quanto a este assunto.

Logo após, ocupar-se-á do tema em espécie – margem de preferência – estabelecendo possível conceituação, bem como delimitando o regramento já existente quanto ao assunto, além de tecer algumas considerações sobre o posicionamento do Tribunal de Contas da União acerca da matéria e como os demais entes da Federação têm encarado o assunto.

1. A lICITAçãO susTenTável: RegulAmenTAçãO dA mATéRIA

O conceito de sustentabilidade não é algo tão recente e desafia uma grande sorte de discussões. Não nos cumpre aqui, todavia, tecer maiores considerações sobre o tema, eis que o objeto do presente artigo reside, em especial, em mencionar o que vêm a ser as chamadas margens de preferência nas contratações públicas, o que, segundo o legislador, guarda relação de compatibilidade com o desenvolvimento sustentável.

O desenvolvimento sustentável é um desenvolvimento que provê a todos um nível de serviço econômico e ambiental básico, sem, contudo, extrapolar os recursos naturais dos quais esse serviço depende. É um equilíbrio entre tecnologia e ambiente na busca da equidade e da justiça social. Consiste em criar um modelo econômico capaz de gerar riqueza e bem-estar. Esse modelo busca satisfazer as necessidades presentes sem comprometer as gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, ou seja,

utilizar os recursos naturais sem comprometer a sua produção, fazer proveito da natureza sem devastá-la e buscar a melhoria da qualidade de vida preocupando-se com as futuras gerações.

Baseia-se, ainda, o desenvolvimento sus- tentável, em três premissas, ou seja, ele requer a existência de três situações: crescimento econômico, qualidade de vida e justiça social. A ausência de qualquer desses elementos ou requisitos é suficiente para que não se possa falar em desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável é largo, consoante já mencionado, e ganha assento em várias disciplinas do Direito. Importa, em se tratando de contratação pública, estabelecer a correlação entre esta e o conceito de sustentabilidade. Como já mencionado, a Lei no 8.666/19932 foi modificada e passou a prever, como funda- mento da licitação, a busca do desenvolvimento nacional sustentável, verbis:

Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvi- mento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos (destacou-se).

Eis o que a doutrina assimila quanto ao desenvolvimento sustentável,3 em se tratando de contratação pública:

O desenvolvimento nacional é, assim, o ali- cerce para o progresso do Estado Brasileiro. Por isso, deve estar presente em cada diretriz de cada agente público. A inserção formal deste princípio na Lei Geral de Licitações é, portanto, auspiciosa, pois lembra aos aplicadores desta que, inclusive nas aquisições públicas, deve-se utilizar de práticas que fomentem o crescimento do País, o que se consegue com atos de estímulo à indústria, ao

  1. A Lei no 12.349/2010 foi regulamentada pelo Dec. Federal no 7.546/2011, que estabelece a aplicação de margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais e de medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica ou de acesso a condições vantajosas de financiamento, de que tratam os §§ 5o a 12 do art. 3o da Lei no 8.666, de 21.6.1993.
  2. A licitação sustentável é um mecanismo primordial na Administração Pública. Embora às vezes mais custoso, não se nega a sua utilidade na busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Destacam-se, nesse modelo, vários exemplos: aquisição de papel reciclado; aquisição de canecas feitas com casca de coco; contratação de empresa de limpeza e conservação que utilize métodos sustentáveis etc. (exemplos obtidos mediante consulta ao site do Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: <www.mma.gov.br>. Acesso em: 27 nov. 2013.).

comércio, ao emprego formal, ao desenvolvimento tecnológico e científico, além de outros, como os constantes do quadro comparativo.4

Inquestionável o intuito do legislador no sentido de marchetar, na contratação pública, o princípio do desenvolvimento nacional sustentável.5 Ideia louvável e que deve ser utilizada, na medida do possível, para a configuração da melhor contratação pública. A prática, contudo, quanto à implementação de cláusulas de sustentabilidade induz a uma tarefa mais complexa, nada obstante o dever geral, por parte do administrador, de incutir nas contratações esse preceito básico. Nesse sentido:

A cláusula geral introduzida na Lei no 8.666/93 pela Lei no 12.349/10 é a da “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”. Em outras palavras, e à conta da configuração jurídica da cláusula geral, toda contratação de obra, serviço ou compra pela Administração Pública deve ser capaz, doravante, de contribuir para promover o desenvolvimento sustentável. Descumprirá essa cláusula geral e padecerá de vício de ilegalidade o contrato inepto para promover desenvolvimento sustentável, ou, pior, que, além de não o promo- ver, o comprometa, a demandar a invalidação da avença e a responsabilização de quem lhe haja dado causa.6

Percebe-se, claramente, que a postura adotada pelos ilustres doutrinadores é um tanto extremada, até mesmo porque não existe uma regra clara definidora do que seja uma licitação sustentável, a ponto de inquinar de ilegal a contratação que assim não o seja, muito embora se comungue do mesmo pensamento no que se refere à busca, incansável, da Administração, na concretização da melhor contratação pública, a qual, segundo a vontade do legislador, passou a ser aquela que, além de isonômica e voltada à melhor proposta, atinge uma margem de sustentabilidade evidente.

Em outro ângulo, não se pode perder de vista um aspecto central relacionado à sustentabilidade, o qual, em pertinência às ideias aqui

4. SANTANA; ANDRADE, 2011, p. 358.

debatidas, encorpa-se com maior destaque: a diferenciação entre desenvolvimento sustentável e sustentado. É que o primeiro é baseado na ideia de equidade entre progresso e preservação, geralmente suportada pelos particulares, fluindo, normalmente, sem a intervenção dominante e quase que central do Poder Público.

Já o desenvolvimento sustentado também tem por desígnio o sinalagma entre aqueles dois elementos – progresso e preservação –, só que, como o próprio nome indica, é sustentado, com forte intervenção do Poder Público. Contraria- mente ao desenvolvimento sustentável, que di- mana de uma forma instintiva, sem a intervenção estatal, no desenvolvimento sustentado somente há desenvolvimento devido à intervenção do Poder Público.

Em outras palavras, o desenvolvimento sus- tentável é o desenvolvimento natural, aquele que acontece de forma espontânea, cuja condução é livre, sofrendo apenas leves direcionamentos do Poder Público. Ao contrário, o desenvolvimento sustentado é promovido quase que exclusiva- mente pelos entes estatais, com a participação ínfima do patrocínio do particular, acarretando, desse modo, um maior gravame para a esfera pública.

Há muita controvérsia e confusão conceitual sobre esse modelo de desenvolvimento que é chamado indiferentemente por modelo sustentável ou modelo sustentado. No nosso entender, face aos conceitos anteriormente expostos, diferem um do outro fundamentalmente. Este último existe porque é sustentado pelo governo, com planejamento e verbas oficiais.7

Eis a relevância dessa discussão para o tema em destaque: a fixação da margem de preferência para produtos nacionais guarda compatibilidade e relação com a ideia de sustentabilidade ou com propostas governamentais que protegem um mercado local e que criam um desenvolvi- mento sustentado pelo governo, à custa de altas expensas ao Poder Público e, indiretamente, à população?

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BLC – AGO/14 779

  1. Entendemos, contudo, que a inserção de critérios de sustentabilidade nas licitações depende muito mais de uma mudança de cultura do que de uma alteração legislativa (COSTA, 2012).
  2. PEREIRA JUNIOR; DOTTI, 2012, p. 371.
  3. KIRZNER, 2003, p. 1.

2. A MARGEM DE PREFERÊNCIA

2.1. Possível significado

A margem de preferência foi introduzida a partir do § 5o do art. 3o da Lei de Licitações. Em verdade, pretende-se, com a margem de preferência, uma suposta proteção ao mercado local, associada, até determinado ponto, ao desenvolvimento nacional sustentável.8 Reza o referido dispositivo legal:

Nos processos de licitação previstos no caput, poderá ser estabelecido margem de preferência para produtos manufaturados e para ser- viços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras.

A legislação especificou em seus posteriores parágrafos, subsequentes ao § 5o do art. 3o, detalhamentos da margem de preferência. De interesse mencionar o § 6o do mesmo dispositivo legal, verbis:

§ 6o A margem de preferência de que trata o § 5o será estabelecida com base em estudos revistos periodicamente, em prazo não superior a 5 (cinco) anos, que levem em consideração:

I – geração de emprego e renda;

II – efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais;

III – desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País;

IV – custo adicional dos produtos e serviços; e

V – em suas revisões, análise retrospectiva de resultados.9

Indubitável que existem critérios para fixação da margem de preferência, os quais se encontram estabelecidos no acima mencionado dispositivo legal. Os outros dispositivos legais

tangenciam normatizações importantes sobre o assunto, porém, sem especial relevância para o presente ensaio.10

Não se desconhece a existência da utilização dessa técnica em outras legislações, a exemplo da Colômbia,11 que prevê a instituição de margem de preferência de até 20% (vinte por cento) sobre os produtos nacionais. Até mesmo a Argentina possui previsão semelhante.12 Todavia, de bom alvitre ressaltar o desconhecimento, de nossa parte, dos motivos que levaram esses países a prever essa técnica de preferência; por suposto, pode (acredita-se) não guardar nenhuma ligação com o desenvolvimento sustentável.

Indaga-se sobre qual teria sido a pretensão do legislador ao estabelecer a referida margem de preferência. Qual a relação existente entre este critério de preferência e a sustentabilidade nas licitações? Remetemo-nos, por agora, à ex- posição de motivos da Lei no 12.349/2010, verbis:

8.O § 5o do art.3o da Lei no 8.666, de 1993, permite que o Poder Executivo estabeleça margem de preferência para produtos manufatura- dos e serviços nacionais que atendam normas técnicas brasileiras. O § 6o do referido artigo estipula a margem de preferência, por produto, serviço, grupo de produto ou grupo de serviços em até 25% acima do preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros. Trata-se, a propósito, de diretriz de política pública que se coaduna ao princípio isonômico, re- ferenciado no caput do art. 3o da Lei no 8.666, de 1993, considerando-se o intuito do poder público em assegurar, com base em critérios de proporcionalidade e razoabilidade, adequados padrões de equilíbrio concorrencial nos certames licitatórios e, desta forma, propiciar, efetivamente, condições equânimes na oferta de produtos e serviços nacionais e estrangeiros (destacou-se).13

  1. Demonstrar-se-á, a seguir, o nosso entendimento acerca da margem de preferência e o desenvolvimento sustentável, posicionando-nos de modo que em nada há qualquer relação entre os institutos.
  2. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 22 out. 2013.
  3. Os parágrafos subsequentes tratam do limite máximo da margem de preferência (25%); da possibilidade de expansão das margens para os países componentes do Mercado Comum do Sul (Mercosul), além de outras questões de relativa limitação.
  4. A lei colombiana que trata sobre o assunto é a de no 816, de 2003, a qual apoia a indústria nacional por meio da contratação pública. Dispõe o art. 2o da referida lei: “Artículo 2o. Las entidades de que trata el artículo 1o asignarán, dentro de los criterios de calificación de las propuestas, un puntaje comprendido entre el diez (10) y el veinte por ciento (20%), para estimular la industria colombiana cuando los proponentes oferten bienes o servicios nacionales”.
  5. Ley no 25551/2001.
  6. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Exm/EMI-104-MP-MF-MEC-MCT-MPV-495-10.htm>. Acesso em: 27 out. 2013.

Desde já, antecipando um tanto a nossa simplória opinião, a margem de preferência nada mais é que uma medida protecionista, que em nada se coaduna com desenvolvimento sustentável. Entretanto, são fortes os posicionamentos doutrinários em sentido contrário, verbis:

A preferência se destina a que o estado assuma – ao menos parcialmente – os custos de desenvolvimento tecnológico de novos produtos ou serviços, e da criação de fontes de produção alternativas desses. Como toda medida estatal de incentivo (e a propriedade intelectual é uma delas) a margem cria uma ineficiência estática, com vistas a uma eficiência dinâmica: o estado paga mais por um produto, para propiciar a inovação nos agentes econômicos integrantes da economia nacional, e criar fontes alternativas de serviços e produtos igualmente vinculados à economia nacional.14

Não há dúvida de que as opiniões variam na conformidade da variância do pensamento político-econômico de quem as expõe. Em uma economia globalizada, na qual tanto se discute medidas protecionistas, margem de preferência, na tentativa de proteção do mercado local, ultra- passa o plano do Direito e vai além da análise econômica. Mantém-se, contudo, hígido quanto à desnecessidade de tais práticas.

2.2. A utilização da margem de preferência na legislação brasileira

Como já mencionado, a margem de preferência foi prevista na Lei no 12.349/2010, porém é somente no âmbito federal que a matéria já se encontra regulamentada. É que, segundo o § 8o do art. 3o da Lei no 8.666/1993, as margens de preferência serão estabelecidas pelo Poder Executivo Federal por meio de decreto.

Até julho de 2013, foram autorizadas as seguintes margens de preferência: Dec. no 7.709, de 3.4.2012 – Margem de preferência para motoniveladoras e retroescavadeiras; Dec. no 7.841, de 12.11.2012 – Alteração da margem de preferência para motoniveladoras e retroescavadeiras; Dec. no 8.002, de 14.5.2013 – Alteração

14. BARBOSA, 2014.

da margem de preferência da aquisição de pás carregadoras, tratores de lagarta e produtos afins; Dec. no 7.713, de 3.4.2012 – Margem de preferência para fármacos e medicamentos; Dec. no 7.756, de 14.6.2012 – Margem de preferência para confecções e calçados; Dec. no 7.767, de 27.6.2012 – Margem de preferência para equipamentos médico-hospitalares; Dec. no 7.810, de 20.9.2012 – Margem de preferência para papel- -moeda; Dec. no 7.812, de 20.9.2012 – Margem de preferência para veículos para vias férreas; Dec. no 7.816, de 28.9.2012 – Margem de preferência para caminhões, furgões e implementos rodoviários; Dec. no 7.843, de 12.11.2012 – Margem de preferência para disco para moeda; Dec. no 7.840, de 12.11.2012 – Margem de preferência para perfuratriz e patrulha mecanizada; Dec. no 7.903, de 4.2.2013 – Margem de preferência para equipamentos da tecnologia e comunicação.*

Trata-se de decretos em áreas centrais de contratação. Muitas dessas margens de preferência chegam ao patamar de 25% (vinte e cinco por cento), onerando, sem dúvidas, os custos do Poder Público quando da contratação. Exemplificativamente: se a União pretende adquirir produto médico, como, por exemplo, uma máquina de hemodiálise, deverá, caso o produto seja nacional, obrigar-se a adquirir tal equipamento por um preço de até 25% (vinte e cinco por cento) mais oneroso que uma mesma máquina estrangeira. Trocando em miúdos e pondo em números: a verba pública que, em um primeiro momento, é suficiente para adquirir 5 (cinco) máquinas de hemodiálise, com o fim de aparelhar determinado hospital, passa a ser disponível apenas para 4 (quatro) máquinas.

Ainda não se tem notícia da utilização das margens de preferência por outros entes públicos. Todavia, caso o administrador opte que sua administração compre os produtos e serviços listados pelo Poder Executivo Federal utilizando o instituto da margem de preferência, os entes federados devem editar atos administrativos (decreto ou portaria).15

* NOTA DO EDITOR: Desde a redação do trabalho, foram editados outros decretos federais dispondo sobre margens de preferência na aquisição de produtos. A título de exemplo, citamos os Decs. nos 8.170/2013, 8.171/2013, 8.184/2014, 8.185/2014, 8.186/2014, 8.194/2014, 8.223/2014, 8.224/2014 e 8.225/2014.

15. BRASIL, 2013.

2.3. A utilização pelos demais entes fede- rados: faculdade ou obrigação?

Outro ponto que chama de igual modo a atenção diz respeito à utilização da margem de preferência por outros entes federados. A questão é extremamente complicada. Devem os demais entes federados obediência irrestrita à Lei no 8.666/1993? Podem esses entes estabelecer critérios distintos dos adotados na regulamentação infralegal federal?

O questionamento passa sobre a indagação dos conceitos de Lei Federal e Lei Nacional, pois que nesta a União atua como representante da soberania estatal, como conjunto das partes, como todo; enquanto na Lei Federal a União atua com autonomia, como parte do conjunto, produzindo normas locais, parciais, em nada se diferenciando dos Estados, Distrito Federal ou Municípios, que também produzem normas lo- cais, parciais, válidas apenas no âmbito espacial de delimitação de seu Poder.

Nada obstante a variação de posiciona- mentos, o sítio do Ministério do Desenvolvimento traz um tópico específico sobre a utilização das margens de preferência por outros entes federados:

5. Quem pode adotar a margem de preferência nas licitações públicas?

Além das licitações públicas no âmbito da administração federal (União), os gestores dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem adotar as margens de preferência estabelecidas pelo Poder Executivo federal, de acordo com o Decreto no 7.546/2011, diante do caráter nacional da norma constante do art. 3o, § 5o, da Lei no 8.666/1993.

A lista com os produtos e serviços passíveis de aquisição com margem de preferência pelos entes federados é autorizada com a edição de normatização específica, por meio de Decreto, do Presidente da República, para os produtos e limites ali especificados.16

Percebe-se, assim, que a utilização da margem de preferência é, a nosso sentir, uma

faculdade a ser utilizada pelos demais entes federados. Não pode o Poder Público Federal impor, aos demais entes políticos que compõem a Federação, o ônus de uma contratação mais custosa.Toda essa análise faz parte do mérito do ato da contratação e de sua análise de planeja- mento, sendo que cada pessoa política é capaz de avaliar suas verdadeiras vantagens.

2.4. O posicionamento dos Tribunais de Contas

Como já mencionado, o tema não é demasia- do novel em nosso ordenamento. Em que pese a Lei no 12.349/2010 ser ainda do ano de 2010, so- mente em 2012 passou a haver regulamentação quanto à adoção dessa margem de preferência, o que desafia uma manifestação ainda tímida dos Tribunais sobre o assunto.

Nada obstante, o TCU possui julgados que, tangencialmente, tratam sobre o assunto, ainda que não tenha exercido manifestações quanto à verdadeira eficácia e vantajosidade das medidas adotadas. Limita-se o TCU a aferir o que pode ser objeto da margem de preferência, é dizer, somente aquilo que já fora devidamente regulamentado por meio de decreto federal. O Tribunal já entendeu que:

a) é ilegal o estabelecimento de vedação a produtos e serviços estrangeiros em edital de licitação, uma vez que a Lei no 12.349/2010 não previu tal situação; b) é ilegal o estabelecimento, por parte de gestor público, de margem de preferência nos editais licitatórios para contratação de bens e serviços sem a devida regulamentação, via decreto do Poder Executivo Federal, estabelecendo os percentuais para as margens de preferência normais e adicionais, conforme o caso, e discriminando a abrangência de sua aplicação.17

Em outro julgado, o TCU destacou que:

A introdução do conceito de “Desenvolvi- mento Nacional Sustentável” no art. 3o da Lei no 8.666/1993 não autoriza: (i) o estabelecimento de vedação a produtos e serviços estrangeiros e, (ii) a admissão de margem de preferência para contratação de bens e serviços, sem a devida

16. Disponível em: <http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3948>. Acesso em: 22 out. 2013.

17. TCU – Acórdão no 1550/2013 – TC 036.273/2011-2 – Rel. Min. José Múcio Monteiro – Grupo: I / Classe: III / Plenário – Data da Sessão: 19.6.2013.

regulamentação por decreto do Poder Executivo Federal.18

Não há, portanto, como mencionado, posicionamentos consolidados sobre o tema margem de preferência. O que existe são apenas manifestações tímidas, inibindo os editais de preverem as referidas margens quando ainda não regulamentadas pelo Poder Público Federal.

3. ANTECIPADAMENTE: ALGUMAS CRÍTICAS

Não restam dúvidas de que a margem de preferência aos produtos nacionais em nada auxilia no mercado local. Não há nenhuma relação inteligível diante de tal instituto que não a própria proteção desmedida e irracional do mercado local. A nosso sentir, a principal ofensa decorrente da utilização das margens de preferência relaciona-se com o princípio da isonomia.

Priorizam-se contratações mais onerosas para o Poder Público sob o suposto argumento de proteção ao mercado local, aos postos de trabalho e à melhoria da economia nacional. Trata-se de um posicionamento econômico (e não jurídico) tacanho e nitidamente protecionista. Não existe relação de lógica e consequência de quantos postos de trabalho serão preservados caso se compre, por exemplo, determinados equipamentos de fabricação nacional.

Sem embargo, a preferência ao produto nacional deve descambar para espécie de reserva de mercado, o que, ao fim e ao cabo, revela-se desvantajosa, como comprovado historicamente. […]

Com vantagem de 25% para os nacionais é crível supor que os estrangeiros nem se animem a oferecer propostas. A tendência é minguar a competição, afastando os licitantes estrangeiros, deixando os nacionais sozinhos, bem acomodados para oferecerem preços mais elevados e ampliarem os seus ganhos às custas do erário.

O fato incontestável é que, ao beneficiar a produção nacional em licitação pública, a Administração Pública aceita a premissa de pagar mais caro por produtos brasileiros ou contratar bens e serviços com qualidade inferior.19

Se a licitação tem por fim a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, também deve, de igual modo, buscar a isonomia e a melhor proposta. Não há como não imaginar a ofensa ao princípio da isonomia em se tratando de margens de preferências tão elevadas. Por outro lado, resta inquestionável que a Administração adquirindo produtos com até 25% (vinte e cinco por cento) de oneração em relação aos demais não está, também, deixando de otimizar a melhor proposta.

Por mais que o Governo Federal assimile que seja viável, na prática, aferir em quais áreas será possível essa fixação de margem de preferência, o que, segundo o Ministério do Desenvolvimento,20 é feito com base em estudos realizados por consultorias especializadas, não há como deduzir a quantidade de tributos, postos de trabalho e outros supostos benefícios que podem advir dessa medida protecionista.

Ademais, ainda considerando que sobrevenham muitos benefícios, indaga-se sobre a onerosidade da contratação, o custo mais elevado para os cofres públicos, desaguando, inarredavelmente, em outros prejuízos paralelos.

Imaginar que uma determinada Administração, dispondo, por exemplo, de cinco milhões para aquisição de medicamentos, poderia adquirir cinco mil caixas de remédios e, ao final da contratação, somente possa adquirir quatro mil, é prejuízo manifesto à população carente. Um país onde faltam remédios, onde falta estrutura hospitalar – e aqui se cinge a apenas esses exemplos – não pode alçar-se à pretensão de desassistir a população embutindo tais medidas.

Há, sem margem de dúvidas, violação ao princípio da isonomia, como também à seleção da proposta mais vantajosa, pois não se faz crível entender que uma proposta com ônus manifesto e elevado para o Estado possa ser a melhor. Quanto aos benefícios, são questionáveis em nosso pensar; por outro lado, os malefícios decorrentes de tal medida parecem ser mais evidentes.

18. TCU – Acórdão no 1317/2013 – TC 032.230/2011-7 – rel. Min. Aroldo Cedraz – Grupo: I / Classe: VII / Plenário – Data da Sessão: 29.5.2013.

19. NIEBUHR, 2010, p. 777.
20. Disponível em: <http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=2&menu=3948>. Acesso em: 22 out. 2013.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em momento algum questiona-se sobre a necessidade da adoção de licitações sustentáveis, que aceitem medidas protetivas ao meio ambiente e que promovam um desenvolvimento econômico não restrito apenas ao puro e simplório crescimento. Pelo contrário: este é o desiderato da Constituição e que, portanto, merece aplausos e deve ser implementado.

O que se questiona é qual a pertinência existente entre a margem de preferência para produtos nacionais e o desenvolvimento nacional sustentável. Como o estabelecimento de margem de preferência pode contribuir para um desenvolvimento mais sustentável.

Inquestionável que a produção nacional deve ser protegida, porém, a adoção da margem de preferência não é, por certo, a melhor medida. Existem outros métodos para tornar o País mais competitivo, a exemplo da diminuição da mastodôntica carga tributária, que permeia a vida e a atividade do empresariado e que, dessa forma, inibe qualquer medida tendente à inovação.

Tencionou-se demonstrar, à luz do exposto, que a margem de preferência é, sem dúvidas, uma medida que em nada auxilia no incremento do mercado nacional, afrontando, magistralmente, o princípio da igualdade, além de onerar os cofres públicos e contribuir para a formação de um mercado protecionista, sem margem de competitividade internacional.

REFERÊNCIAS

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Lei 12.349/2010. Disponível em: <http://www.de nisbarbosa.addr.com/arquivos/200/poder_com pra/licitacao_instrumento_incentivo_inovacao. pdf>. Acesso em: 3.7.2014.

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KIRZNER, Vania. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001). Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em: <http://www1. jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3899>. Acesso em: out. 2013.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Margem de Preerência para a Produção Nacional em Licitação Pública – Repercussões da Medida Provisória 495/10. Revista Zênite ILC – Informativo de Licitações e Contratos, ano XVII, n. 198, p. 777-778, ago. 2010.

PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas Públicas nas Licitações e Contratações Administrativas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

SANTANA, Jair Eduardo; ANDRADE, Fernanda. As Alterações da Lei Geral de Licitações pela Lei no 12.349/10: Novos Paradigmas, Princípios e Desafios. BLC – Boletim de Licitações e Contratos, São Paulo, NDJ, p. 352-365, abr. 2011.