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“… E tudo que é efêmero se desfez. E ficaste só tu, que é eterno”, dizia a poetiza Cecília Meireles, talvez preconizando, quanto à efemeridade, a atividade normativa que emerge da edição das medidas provisórias, deixando, ao eterno, os efeitos do que é regulado por tais tipos de normas.
Chama atenção a polêmica que gira entorno do tema “Medida Provisória”, seja pelas matérias tratadas (quase sempre sem a devida urgência que lhe deve ser natural), seja pelo fato de envolver uma combustão entre os Poderes, onde o Executivo avança no espaço que é destinado ao Poder Legislativo, exercente típico da função normativa.
Todavia, algumas matérias, se não tratadas por meio de MPs, podem ocasionar problemas ainda maiores, daí que a urgência impõe a sua imediata edição. Quanto à temática da pandemia ocasionada pelo Coronavírus, foram necessárias edições de várias destas medidas, algumas delas bastante questionáveis, outras, contudo, assimiláveis e editadas em boa hora. Cite-se, por exemplo, a Medida Provisória nº 928, de 23 de março deste ano de 2020, que alterou a redação da Lei nº 13.979/20, a qual dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Limitar-nos-emos à parte da MP nº 928 que suspende os prazos processuais, acrescendo, à Lei nº 13.979/20, o artigo 6º-C, com a seguinte redação em seu caput: “Não correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo nº 6, de 2020”. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal foi assim redigido: “Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.112, de 1990, na Lei nº 9.873, de 1999, na Lei nº 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos”.
A redação do caput já era bastante clara quanto à correta interpretação que poderia ser conferida aos prazos que correm em desfavor dos acusados — estavam suspensos. Dita suspensão perduraria até a vigência do Decreto Legislativo nº 6, que se estende até o dia 31 de dezembro de 2020.
Para que não haja malversações quanto à nossa fala, bem se destaque que o parágrafo único foi nítido quanto aos benefícios também concedidos à Administração Pública, porque suspendeu o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas. Dito de outro modo, a MP nº 928 não beneficiou apenas os acusados.
Certo é que, diante do cenário decorrente da pandemia — que até hoje persiste —, não haveria (e nem há) razões para haver processamento de empresas, servidores ou quaisquer pessoas ou acusados, simplesmente porque os meios de defesas, com amplíssima produção probatória e exercício pleno do contraditório, encontram-se dificultados, reduzidos ou mesmo impossibilitados de serem realizados, ao menos na feição desejada pelo legislador constituinte originário.
Ocorre, entretanto, que a dita Medida Provisória nº 928 tem seu último dia de vigência na data de hoje, 21 de julho de 2020, e, por isso, vários problemas vêm despontando, os quais podem ser resumidos em uma só indagação: enfim, os prazos continuam suspensos até o fim do Decreto Legislativo nº 6/20 ou, com a perda da eficácia da Medida Provisória, igualmente cessam os efeitos do artigo 6º-C e parágrafo único da Lei nº 13.979/20?
Longe de ser uma resposta fácil, dedutível de uma apressada interpretação literal, a questão não é tão simples. Isso porque há efeitos (suspensão dos prazos) que decorrem da Medida Provisória nº 928 e que, por sua redação, se estenderiam até o dia 31 de dezembro de 2020; logo, a simples perda de eficácia não induz, necessariamente, à perda dos efeitos que foram produzidos pela mesma MP.
A possível solução para o impasse interpretativo estaria na redação conjunta do § 3º e § 11 do artigo 62 da Constituição Federal. Bem, este último parágrafo (§ 11) acentua que “Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”. Infere-se, portanto, que, na ausência do Decreto Legislativo a que se refere o § 3º do referido arigo. 62, mantêm-se os efeitos da Medida Provisória.
Bem, até o presente momento inexiste o referido Decreto Legislativo, remanescendo, a nosso sentir, os efeitos decorrentes da Medida Provisória. O tema, decerto, é envolvo de polêmicas. Cite-se, a exemplo, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 894, onde o STF sustentou a tese de que “o § 11 do art. 62 da CF deve ser interpretado com cautela, não se podendo protrair indefinidamente a vigência de medidas provisórias rejeitadas ou não apreciadas”.
Entretanto, o posicionamento do STF, em 2018, quando do julgamento da ADPF nº 894 não se voltou a um contexto de pandemia. Mais que isso, a MP nº 928, ao contrário do que apreciou o STF, não intenta protrair indefinidamente a vigência de medidas provisórias rejeitadas ou não apreciadas, especialmente porque há um prazo máximo, definido na própria MP nº 928, para a finalização da suspensão do transcurso dos prazos que correm em desfavor dos acusados, ou seja, os efeitos da MP nº 928 limitar-se-iam ao prazo de vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 2020, que vigora até o dia 31 de dezembro de 2020.
Por fim, relembre-se que as partes e pessoas jurídicas, acusadas em processos administrativos, confiaram, legitimamente, no prazo estabelecido, quando da edição do Decreto Legislativo nº 6, pelo próprio Congresso Nacional, dia 31 de dezembro, o que afasta a suposta ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal. Portanto, mudar as regras do jogo, em meio a um momento tão turbulento, não parece ser a melhor alternativa, sobretudo porque ainda vigente a Lei nº 13.979/20, que prevê, inclusive, uma série de alternativas à solução da crise.
Para o atual momento, suspender o que se encontra suspenso nem sempre é a melhor saída. Relembre-se, por derradeiro, que a pandemia não acabou e, com ela, ainda se mantêm intactos os efeitos do Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Dê-se, portanto, razão à Cecília Meireles, e não se desfaçam os efeitos do efêmero.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.
Rafaela Stochiero é advogada e assessora especial do Gabinete da Procuradoria Geral do Distrito Federal.