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Há algum questionamento sobre a origem e a história do Carnaval pelo mundo, sendo certo que não é uma invenção totalmente brasileira. A análise das origens históricas demonstra que ele sofreu sérias influências de outras festas que aconteciam na Antiguidade.
A par da simbólica existência de máscaras e fantasias em Roma (tais quais nas festas Saturnália e Lupercália, a primeira, no solstício do inverno; a segunda, em fevereiro, que seria o mês das divindades infernais) e em Veneza, foi no Brasil que o Carnaval ganhou fortes contornos, com as mais diversificadas fantasias, que, seguindo os modelos dos bailes venezianos, disseminaram-se por todo o território nacional.
No Carnaval brasileiro, ainda que o baile possa ser o mesmo, as fantasias são variadas. Quer-se com tudo isso dizer que, apesar de a festa contar com uma certa uniformidade quanto à dança e estilo (muito embora haja particularidades regionais), a diferença se faz justamente na vestimenta carnavalesca, escolhida segundo os critérios de cada folião.
Bem assim é a “nova” modelagem de transação na improbidade administrativa decorrente do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19), que nos faz lembrar um baile carnavalesco, onde, teoricamente, há um só samba e ritmo, aparentemente uma só alegoria e, iludivelmente, uma só vestimenta, a fantasia; na prática, vários foliões, ditando seus diversos ritmos, vestidos cada qual de forma distinta – embora uma ou outra coincidência possa existir.
Para o quanto aqui interessa, a Lei nº 13.964/2019, dando nova redação ao artigo 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), passou a permitir o chamado acordo de não persecução civil, além de haver criado, no § 10-A, a possibilidade de interrupção do prazo para contestação, caso haja a possibilidade de solução consensual.
Dito de outro modo, inegável que hoje, diante da atual conjuntura legislativa, existe a possibilidade de transação na improbidade administrativa, restando, contudo, uma dúvida sobre como ela deverá ocorrer na prática. Isso porque há, inquestionavelmente, a possibilidade de várias e extensivas interpretações dos dispositivos legais que foram alterados ou inseridos no corpo do artigo 17 da Lei nº 8.429/92.
Exemplificativamente, o novo § 10-A aborda a possibilidade de interrupção do prazo para contestação, mas nada fala sobre a interrupção do prazo para recurso. É bem crível que, se o recurso é uma extensão do estado de litispendência do processo, não há qualquer impeditivo para que também haja a interrupção do prazo recursal; todavia, a lei, literalmente, só menciona a interrupção do prazo para a contestação.
É dizer, ao se interpretar ao “pé da letra” a norma acima mencionada, logo se vê, indene de incertezas, que o legislador foi claro quanto à interrupção do prazo somente para a contestação, nada abordando sobre interrupção do prazo recursal. Todavia, esclarecendo-se teleológica e sistematicamente a norma, é de todo válido defender que também se faz possível a interrupção do prazo para a interposição de recursos. Ora, se a finalidade é interromper para solucionar consensualmente, por que tal solução estaria adstrita somente ao momento da contestação?
Outro questionamento — mero exemplo —, que também chama atenção ao ensejo das alterações normativas, diz respeito ao que é passível de transação, ou seja, qual seria o objeto e os limites do acordo consensual. A MP nº 703/2015, que teve por destino a caducidade,era mais clara e concisa ao simplesmente revogar o § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.492/92, o qual, em sua versão original, acentuava: “é vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata esse caput”. De tal modo, porque não mais proibia, a Medida Provisória em análise concedia, a nosso sentir, uma maior liberdade de transação. Por agora, a lei fala em “acordo de não persecução civil”.
Decerto, nada há de tão “novo” nas alterações promovidas pelo chamado Pacote Anticrime quanto à transação na Lei de Improbidade Administrativa. O que desponta como chamativo é a consumação legislativa, de forma definitiva, quanto à possibilidade de transação, mesmo que não tenha havido, tal qual na MP nº 703/2015, a supressão total do § 1º do artigo 17 da Lei nº. 8.429/92; há, agora, um negócio jurídico processual, que também não é ousada novidade, eis que já previsto no Código de Processo Civil – lei ordinária de igual força normativa (artigo 190).
Poderia o leitor indagar-se: é, mas o acordo de não persecução civil (§ 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/92), bem assim o acordo para interrupção de prazos (§ 10-A do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa), são inovações para a Fazenda Pública. Ledo engano! Há vários exemplos neste sentido. Já se fazia possível, à Fazenda Pública, transacionar, acordar, ajustar etc. Prova disso é a alteração na Lei de Arbitragem, que permitiu à Administração Pública submeter-se à arbitragem, desde que se tratasse de direitos patrimoniais disponíveis. Por igual,a Lei nº 13.140, de 26 de maio de 2015, que veio dispor sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias (abrangendo a mediação judicial e a extrajudicial) e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, dentre tantos outros exemplos.
Certo é que o Pacote Anticrime, alterando a Lei de Improbidade Administrativa, possibilitou várias interpretações às novidades normativas. Citamos, linhas acima, e sem pretensão de esgotamento da matéria, apenas duas inquietações, não solucionadas, de imediato, pelo legislador ordinário, mas que permitem, na análise dos casos concretos, multifacetadas interpretações.
É claro que, em boa hora, o legislador resolveu incrustar, no corpo normativo, garantindo maior segurança jurídica, o que já era visivelmente possível realizar: a transação na improbidade; as modificações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), destacadamente a previsão do art. 26, já haviam derrogado a anterior versão do artigo 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92.
O problema persiste, entretanto, na ausência de fixação, na Lei nº 8.429/92, sobre como se dará o chamado “acordo de não persecução civil” (§ 1º do artigo 17), bem como sobre qual será a interpretação do novel § 10-A do mesmo artigo 17, delimitando os limites da solução consensual. São enigmas a serem solucionados, talvez no embalo variante das Resoluções de cada Ministério Público Estadual (e mesmo do Federal), de onde podem despontar múltiplas e buliçosas fantasias.
Infelizmente, na persistência de uma norma um tanto genérica e ainda imprecisa, submeter-se-ão os agentes acordantes a uma insegura margem interpretativa. Na prática, o carnaval está autorizado, o baile ocorrerá, mas as máscaras e fantasias serão variadas — conhecidas, quiçá, apenas no momento da festa. Eis aqui, na transação em improbidade administrativa, um verdadeiro Carnaval à brasileira!
Guilherme Carvalho Doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Advogado e sócio do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.
Sérgio Ferraz é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2020,