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Nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, contra a Inglaterra, o argentino Diego Armando Maradona conseguiu a façanha de emplacar os dois gols mais importantes e emblemáticos de sua carreira.
Um deles, eleito o gol mais bonito de todas as Copas, ao arrancar do meio do campo enfileirando ingleses e empurrar a bola até a meta vazia, de fato foi gol; no outro, marcado aos 5min do segundo tempo, Maradona, do alto de seu 1,65 m, superou o goleiro para abrir o placar, utilizando-se da ajuda de sua mão esquerda, “La Mano de Dios”, nas palavras de seus compatriotas.
Ainda que um deles tenha sido marcado “um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus”, disfarçando a atenção do árbitro tunisiano Ali Benacceur, ambos os “gols” foram, ao final da histórica partida, considerados válidos, vingando todo o país, ainda machucado pela derrota da argentina na Guerra das Malvinas, em 1982.
É inquestionável que o “gol” de Maradona foi considerado válido (tanto o é que a Argentina foi campeã da Copa do Mundo, em vitória sobre a Alemanha, na partida final, por 3 a 2), embora não possamos dizer que tenha sido uma jogada dentro dos ditames e regras futebolísticas.
Mas o gol de mão de Maradona representa, ainda hoje, uma certa desfaçatez sobre como o procedimento pode ludibriar o resultado final. Repito, leitor, foi gol, mas não obedeceu ao devido procedimento.
Mas o que há de similitude entre o “gol de mão” de Maradona e o procedimento previsto na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13 —que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências)? Sendo mais direto: por que o Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), previsto na Lei nº 12.846/13, é um “anti-jogo”?
A Lei Anticorrupção dispõe sobre o PAR a partir de seu artigo 8º, cujo caput testifica, em sua parte final, a necessidade de observância ao contraditório e ampla defesa: nada mais lógico — artigo 5º, LV, CF.
Mas o problema não se encerra por aqui, porquanto aludida lei, no que é seguida por seu decreto regulamentador, Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, não possibilita qualquer recurso administrativo, a despeito da existência de um açoitado Pedido de Reconsideração (artigo 11 do Decreto nº 8.420/15), que, bem se sabe, não é recurso, dado que julgado e apreciado pela mesma autoridade que instituiu e aplicou a sanção.
Ora, por que então abordar a necessidade de se observar o contraditório e ampla defesa, se não há qualquer possibilidade de se recorrer administrativamente? Que troço mais ilógico, sobremais para uma legislação que deve ser aplicada no âmbito federal como um todo! De se ver, ainda a reboque de tais somíticas ideais, que a recente Instrução Normativa da Controladoria-Geral da União (CGU) — IN 13, de 18 de agosto de 2019, que define os procedimentos para apuração da responsabilidade administrativa de pessoas jurídicas, de que trata a Lei Anticorrupção, a serem observados pelos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal — segue o mesmo conteúdo, não contemplando a possibilidade de se recorrer administrativamente (prevê, exclusivamente, o mesmo vergalhado Pedido de Reconsideração — art. 28).
A despeito da inexistência da possibilidade de recursos administrativos, no âmbito federal, quando do Processo de Apuração de Responsabilidade (PAR), outras unidades federadas, em obediência lógica e irrestrita ao texto constitucional, assim o preveem. Cite-se, em mera exemplificação, o Decreto Estadual nº 60.106/14, que regulamenta a Lei Anticorrupção no Estado de São Paulo: neste ente federativo, há, expressamente, a possibilidade de recurso administrativo (artigo 3º, § 2º); mais incisivamente, o artigo 23 da Lei pernambucana nº 16.309/18, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, no âmbito do Poder Executivo Estadual, regula o recurso administrativo, ao estabelecer que terá prazo de 15 (quinze) dias para interposição e efeito suspensivo.
Na seara federal, não poderia ser diverso; de rigor, impera, para a União, a necessidade de uma orientação mais ampla, dócil e submissa ao texto constitucional, com a possibilidade de recurso administrativo decorrente da decisão sancionatória. Dito de outro modo, o mero Pedido de Reconsideração previsto na normativa federal não é deferente ao constituinte originário e, portanto, claramente inconstitucional.
A prevalecer um Processo Administrativo de Responsabilização, no âmbito federal (seja na Administração Direta, seja na Administração Indireta), nos termos da inconstitucional Lei nº 12.846/13, do Decreto nº 8.420/15 e da IN nº 13/19-CGU, teremos um verdadeiro antijogo, desrespeitoso ao previsto na própria Constituição: haverá processo e haverá sanção, mas as regras do jogo constitucional não terão sido seguidas, maculando tudo quanto for decidido.
Ao contrário de Maradona, que, com seu “gol de mão”, arrefeceu os ânimos do povo argentino, derrotado nas Falklands, levando os quase 120 mil espectadores do Estádio Azteca ao delírio, a Lei Anticorrupção não permite condutas faltosas ao “bom jogo”, requerendo regras claras, precisas e direcionadas ao normal procedimento, que, por óbvio, apontam ao vértice da Constituição Federal.
Definitivamente, o PAR não pode ser conduzido “com a mão”, sob pena de produzir um resultado que, nada obstante válido, é “antidesportivo”, digo, inconstitucional!