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Zé Ramalho, em uma “tradução” de “Tomorrow is a Long Time”, de Bob Dylan, poetizou “E se hoje não fosse essa estrada/ Se a noite não tivesse tanto atalho/ O amanhã não fosse tão distante (…)”. Ambos os compositores, como que vislumbrando um futuro próximo, tentaram retratar a dificuldade em lidar com o desconhecido, onde as previsões cedem lugar ao mundo do aleatório e inesperado.
Por certo, não estamos diante da primeira pandemia mundial e, para nosso azar, talvez não seja a última. Não há ciência que encapsule um organismo viral e lhe tolha a capacidade de se proliferar, ainda que em desarmonia à nossa mais absoluta autonomia da vontade, algo que não é, infelizmente, respeitado pelo vírus.
E neste momento crônico pelo qual passamos, tudo de novo surge; fenômenos já não mais conhecidos exsurgem, revolvem e, algumas vezes, até atropelam o que sequer se poderia pensar ser modificado. É que o Direito procura trabalhar com probabilidades esperáveis, minimamente calculadas, estabelecendo regras jurídicas a partir de critérios estáveis e não velozmente mutáveis. Diga-se, contudo, que, até mesmo para o que é razoavelmente imprevisto ou, às vezes, totalmente incalculável, o ordenamento tenta “dar conta”, estabelecendo um critério, a crivo do Judiciário, para avaliar os efeitos do que não foi calibrado pelo legislador. É a tal da medieval máxima “rebus sic stantibus”, empregada para designar a Teoria da Imprevisão.
Esse é o debate mais sofisticado em economia dos contratos. Todavia, o presente escrito tem um propósito bem limitado, jamais alvissareiro, afastado de qualquer pretensão de exaustão quanto a esse riquíssimo tema —Teoria da Imprevisão —, o qual, até em momentos de normalíssima condução social, já é complexo e polêmico; que se dirá, então, diante de um fervoroso espaço de total insegurança e acanhadas probabilidades!
Busca-se, portanto, tão somente avaliar quais os limites da aplicação da Teoria da Imprevisão (normatizada, dentre outros, no artigo 478 do Código Civil Brasileiro) às relações jurídicas já estabelecidas, notadamente àquelas embrionadas anteriormente à eclosão da pandemia decorrente da Covid-19, mas cujos efeitos ainda se protraem no tempo.
Intenciona-se, a partir dessa reflexão, apartar — ou, ao menos, abduzir — uma margem distorcida de insegurança jurídica, alheia à vontade das partes e aos próprios acontecimentos dos fatos, eliminando as espertezas daqueles que, aproveitando-se do problema, buscam, a qualquer — e todo — custo, um reequilíbrio do que ainda não foi desequilibrado, abusando do caos instalado para, igualmente a outros, nitidamente desestabilizados, sacar proveito, na tentativa de igualar-se a situações notadamente desiguais.
Antes de iniciar a problematização, eis o que o Código Civil brasileiro aborda quanto ao assunto: “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.
A norma é bem clara: a intervenção judicial ocorrerá quando acorrerem eventos extraordinários e imprevisíveis. Claramente, as sequelas que decorrem da Covid-19 são imprevisíveis e ainda incalculáveis. O que é um quase-verdade hoje pode vir a não ser amanhã. Tudo se questiona, nada se comprova; e daí surge o medo, a mudança, quase que diários, promovendo uma disfunção nas relações jurídicas já antes aparelhadas.
É contumaz audácia aventurar-se em instituir, organizada e construtivamente, uma prevenção sobre o imprevisível. Ora, a semântica descritiva encarrega-se de delinear a própria impossibilidade de alinhar qualquer cálculo minimamente abalizado sobre o que se pode ter como indefinido. Mas, em nossa experiência jurídica brasileira, nunca estivemos em um cenário tão enturvado quanto aos fatos, ao destino e, em certa medida, até mesmo ao presente.
Eis aqui o maior desafio já experimentado pelo Poder Judiciário, não só no Brasil, como também mundo afora: como serenar interesses, formados em outro contexto, cujo texto (pouco importa se escrito) foi remodelado por um acontecimento tão disforme à vontade das partes? Até que limite é lícito ao Judiciário emplacar a Teoria da Imprevisão? Dito de outro modo, para tudo o que decorra deste infausto episódio pandêmico deve o juiz aplicar uma mudança de rumos?
O que seria, na prática, imprevisão? Será que é possível ir além do debate clássico de Direito Civil para adentrar em graus de incerteza que afetam os contratos, independentemente de eles serem ou não mensuráveis? Nesta vagueza, é que reside o âmbito de aplicação da Teoria da Imprevisão, que incide sobre as incertezas são mensuráveis (mesmo probabilisticamente) ou que advêm da racionalidade limitada das partes.
Porém, não se pode partir de uma ideia tão simplista, eis que o mundo é muito mais complexo hoje do que fora no passado. A Teoria da Imprevisão deve ser sofisticada de tal modo a levar em consideração a ideia de incerteza relevante (strong incertainty), que é marcada pela ausência da possiblidade quanto ao estabelecimento de uma distribuição de probabilidade para um determinado evento, de forma explícita (matriz de risco) ou cognitiva. Se assim não for (e assim tem sido!), haverá apenas uma “razoabilidade intuitiva” para tomar decisões; entretanto, esta fórmula é tacanha e, por isso, não alcança a matriz do problema.
Todas essas aflições são preocupantes, sobretudo pelo avanço que a legislação já ousava semear nas relações jurídicas, designadamente as alterações promovidas, no Código Civil, pela Lei nº 13.874/19, “Lei de Liberdade Econômica”, que pretendeu dar mais credibilidade à vontade das partes, ausentando do Poder Judiciário a perspectiva de suplantar tal vontade ou, minimamente, reduzindo esta faculdade.
Tais modificações são facilmente encontráveis no próprio Código Civil, com a redação que lhe foi dada pela “Lei de Liberdade Econômica”. Pretendeu o legislador protagonizar o interesse primevo das partes, através da vontade inicial, tudo no intuito de encurtar a insegurança nas relações jurídicas, criando um mais acautelado e protegido ambiente de negócios.
Como mera exemplificação, registre-se que a nova redação dada ao artalign=”justify”. 421 do Código Civil lhe garantiu um parágrafo único, segundo o qual “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”, uma quase negação da Teoria da Imprevisão, não fosse a manutenção, pelo legislador, da mesmíssima redação original do art. 478, antes citado: eis aqui cravada — para os dias de hoje e para os que seguirão – uma problemática de conturbada resolução.
Para tanto, a despeito da imprevisibilidade remanescer sem previsão de acabar (clemência à mais extremada tautologia), decisões judiciais sem avaliações quanto ao seu consequente impacto econômico, distraídas de qualquer base de dados que lhe garantam um édito seguro e hígido, calcadas, exclusivamente, na Teoria da Imprevisão decorrente da pandemia, mais se parecem holofrases, na mais íntima utilização pré-linguística, que, de regra, não retratam a complexidade das ideias que vêm ao derredor do que deveriam expressar. Dito de outro modo, mesmo no imprevisto, nem tudo é Teoria da Imprevisão.
Um avanço significativo no que se denomina a “moderna Teoria da Imprevisão” trina-se imprescindível, consignando aspectos de incerteza e risco, racionalidade limitada, probabilidade condicional e viés cognitivo. No Brasil, em que pese a necessidade de aprofundamento quanto ao tema, há, infelizmente, um mero engatinhar.
É forçoso que permaneçam vivos os matizes que nortearam a prometedora e esperançosa “Lei da Liberdade Econômica”. Por igual, é notório que pode (e deve) o juiz atuar — se e quando possível —, pena de completa negação à “rebus sic stantibus”. Todavia, é dever do julgador apreciar cada caso da forma mais distinta possível, laborando rigidamente como se um médico fosse, com doses medicinais que variam a depender do paciente e que podem, inclusive, sequer serem utilizadas, se a cura não depender da profilaxia.
Assim, a despeito da existência do coronavírus, manteremos vivos nosso ambiente de negócios, propiciando, mais rapidamente, a retomada das naturais relações comerciais, necessárias ao destravar da economia e indispensáveis ao afastamento de outra temerosa imprevisibilidade: a que decorre da interpretação, por sujeitos alheios, aos negócios jurídicos firmados pelas partes.
Assim, a despeito da existência do coronavírus, manteremos vivos nosso ambiente de negócios, propiciando, mais rapidamente, a retomada das naturais relações comerciais, necessárias ao destravar da economia e indispensáveis ao afastamento de outra temerosa imprevisibilidade: a que decorre da interpretação, por sujeitos alheios, aos negócios jurídicos firmados pelas partes.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.
Marcos Nóbrega é professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), conselheiro substituto do TCE-PE. Visiting Scholar Harvard Law School.
Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2020