A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES PARA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO ÂMBITO MUNICIPAL: A CRIAÇÃO DO PLANO DIRETOR

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  • INTRODUÇÃO

O presente artigo terá por propósito demons- trar o instituto da gestão democrática das cida- des, previsto na Lei nº 10.257, de 2001, denomi- nado de Estatuto da Cidade, como instrumento de concretização de políticas públicas. Preten- de-se comprovar que somente com a participa- ção ativa da população, através da gestão demo- crática, torna-se possível a elaboração de um planejamento urbano que, efetivamente, atenda aos verdadeiros interesses da comunidade.

Objetiva-se, portanto, evidenciar que a parti- cipação da população, por meio da gestão demo- crática das cidades, é fundamental na conforma- ção e elaboração do plano diretor municipal, visto como política pública em concreto. Para tanto, ainda que sucintamente, será feita uma análise conceitual do Estatuto da Cidade, realçando, es- pecialmente, os conceitos de plano diretor e de gestão democrática das cidades, de maneira a propiciar um diálogo desses institutos com a defi- nição de política pública e com suas principais características.

Além disso, a fim de se manter uma visuali- zação concreta de como o fenômeno vem sendo enfrentado no Brasil, analisar-se-ão dois exem-

plos práticos bem-sucedidos ocorridos em algu- mas cidades brasileiras, procedendo-se à conca- tenação da teoria com a realidade prática1.

Nesse ínterim, será feito um diálogo desse processo participativo da população na elabora- ção do plano diretor com a política pública pro- priamente dita, problematizando-se o tema a fim de desvendar se, realmente, a participação de outros atores tem influência na deliberação e for- mação da política pública em concreto – o plano diretor municipal.

Utilizar-se-á a obra de Carlos Matus2 como marco teórico sobre essa participação de outros atores na elaboração da política pública, esbo- çando de que modo acontece a participação, qual o critério de entrada para a representação, além de tencionar a função da linguagem nesse jogo social3.

 

  • DEFINIÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICA

Diante da multiplicidade conceitual sobre políticas públicas, faz-se necessário identificar suas características determinantes, ante a im- possibilidade de ser adotado um conceito único. A formulação de um conceito, como se pode ob- servar em diversas doutrinas que tratam do as- sunto4, ocorre conforme o caráter que se preten-

 

 

  • Foram utilizados exemplos de dois Municípios brasileiros (Batalha, no Estado do Piauí, e Laranjal do Jari, no Estado do Amapá). As informações foram obtidas do site do Ministério das Cidades (www.cidades.gov.br). Trata-se de experiên- cias bem-sucedidas, segundo previsto no próprio site. Portanto, os dados apresentados nos relatórios utilizados não são totalmente suficientes para a verificação dos alcances proporcionados pela implementação do plano diretor em cada cidade implantado. Pôde-se observar que as informações disponibilizadas não exaurem, em profundidade, as possíveis análises de cada caso. Em outras palavras, trata-se de uma fonte de dados limitada e parcial, pois, como dito, somente foram disponibilizadas informações de casos bem-sucedidos e de modo superficial.
  • Carlos Matus, Teoria do Jogo Social, São Paulo, FUNDAP, 2005.
  • Abordou-se o conceito traçado por Matus de práticas sociais horizontais, enfatizando o processo de  participação política, a fim de demonstrar que, na realidade, tudo se torna um jogo, e que nesse jogo estão envolvidos os mais variados atores. O objetivo do estudo desse autor é demonstrar que a prática social extrapola a formação profissional, exigindo o estudo do campo, tornando a prática social mais horizontal e transdepartamental.
  • Logo abaixo, serão expostos os principais conceitos adotados pela doutrina especializada.

 

 

de tornar operável por meio dele, ou seja, parte da demanda da ciência em questão.

Em outras palavras, como a formulação de conceito de políticas públicas depende do aporte doutrinário para o qual se pretende operaciona- lizar, não há unicidade sobre o conceito em ques- tão. Os elementos que o fundamentam serão ele- gidos a partir de uma concepção parcial das ciên- cias sociais, políticas ou jurídicas, por exemplo, o que se justifica para viabilizar a compreensão do objeto a determinada ciência.5

Em um primeiro momento, deve-se mencio- nar que a linha argumentativa a qual se pretende travar está relacionada à interpenetração entre a política pública e a participação da comunidade, no sentido proposto por Lahera6, de que uma boa política pública é a desenvolvida pelo setor públi- co e, frequentemente, com a participação da co- munidade e do setor privado, correspondente a cursos de ação e fluxo de informação relaciona- dos com um objetivo político definido de forma democrática.

Antes de tudo, alguns conceitos necessitam ser abordados, até mesmo para que se consiga chegar a um ponto de confluência. Para Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi:

Trata-se de um fluxo de decisões públi- cas, orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a mo- dificar essa realidade. Decisões condiciona- das pelo próprio fluxo e pelas reações e mo- dificações que elas provocam no tecido so- cial, bem como pelos valores, ideias e visões dos que adotam ou influem na decisão. É possível considerá-las como estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos gru- pos que participam do processo decisório. A finalidade última de tal dinâmica – consolida- ção da democracia, justiça social, manuten-

ção do poder, felicidade das pessoas – cons- titui elemento orientador geral das inúmeras ações que compõem determinada política. Com uma perspectiva mais operacional, po- deríamos dizer que ela é um sistema de de- cisões públicas que visa a ações ou omis- sões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou de vários setores da vida social por meio da definição de estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atin- gir os objetivos estabelecidos7.

A política pública é composta por um fluxo de decisões públicas que visa manter ou introdu- zir desequilíbrios na seara social com o fito de remodelar sua realidade por meio de estratégias de atuação e alocação de recursos. Trata-se de estratégias direcionadas a fins que podem variar conforme os grupos que participam do processo decisório. O elemento orientador geral será a consolidação da democracia, da justiça social, da manutenção do poder, bem como da felicida- de das pessoas.

Precioso o conceito de Bucci:

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente re- gulados – processo eleitoral, processo de pla- nejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e poli- ticamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva dos meios necessá- rios à sua consecução e o intervalo de tem- po em que se espera o atingimento desses resultados8.

 

  • Mais à frente, ver-se-á que isso ocorre por causa da forma departamentalizada com que as ciências tratam a realidade, devido à visão vertical que possuem. Nesse sentido, Matus posiciona-se a favor de uma ciência prática, com uma visão horizontal da realidade social.
  • Eugenio Lahera Parada, “Política y Políticas Públicas”, pp. 67/95, in Elisabete Ferrarezi,  Enrique Saravia,  Brasília, ENAP, 2006, pp. 68/69.
  • Enrique Saravia, “O Conceito de Política Pública”, pp. 21/42, in Enrique Saravia, Elisabete Ferrarezi (orgs.), Políticas Públicas, Coletânea, vol. 1, ENAP – Escola Nacional de Administração Pública, Brasília, 2006, pp. 28/29.
  • Maria Paula Dallari Bucci, “O Conceito de Política Pública em Direito”, pp. 1/49, in Maria Paula Dallari Bucci,

Políticas Públicas, Reflexões Sobre o Conceito Jurídico, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 39.

 

 

Em relação ao suporte jurídico, as políticas públicas não possuem formato único, podendo ser previstas nos mais diversos padrões norma- tivos, inclusive alicerçadas no próprio Texto Cons- titucional, como é o caso, por exemplo, do Fundo de Educação Básica e do Plano Diretor dos Mu- nicípios, este previsto no art. 182 da Constitui- ção Federal9.

Pela exemplificação dos conceitos acima, verifica-se que os autores selecionaram os ele- mentos que julgaram importantes para as res- pectivas áreas científicas. Lahera parte da pe- netrabilidade da esfera pública e privada para a adequação da política pública. Saravia forneceu enfoque sobre elementos relacionados à gestão social com vista a aspectos políticos do Estado, enquanto Bucci partiu de um esforço de compreen- são jurídica sobre o tema, elaborando o conceito em termos compreensíveis ao Direito Adminis- trativo, portanto, à seara jurídica, numa proposta de dialogar com tal objeto.

Não obstante a seletividade de elementos conformadores desses conceitos, uma das ca- racterísticas mais interessantes de política públi- ca reside na ideia da participação popular, tanto no processo de formulação como também de decisão e execução dessas políticas.

A participação popular nas etapas das políti- cas públicas permite maior penetrabilidade da Administração Pública e formulação jurídica de normas10 adequadas às demandas da realidade social. Veja-se:

Na prática, o que ocorre é que derruba- dos os muros altos que separam a Adminis- tração Pública da sociedade, esta passa a participar da concepção, da decisão e da im- plementação das políticas públicas. As au- diências públicas, as consultas públicas são exemplos de como se dá na prática a partici- pação na elaboração das políticas públicas;

o plebiscito administrativo, o referendo, as comissões de caráter deliberativo exemplifi- cam, por seu turno, a participação no próprio processo de decisão; as comissões de usuá- rios, a atuação de organizações sociais ou de entidades de utilidade pública, e até uma recente expansão da concessão de serviços públicos, fornecem uma amostra de partici- pação na própria execução das políticas pú- blicas11.

Nesse aspecto, em relação à elaboração do plano diretor municipal, a participação da popu- lação se mostra essencial, pois, retomando o con- ceito de Lahera, uma boa política pública neces- sita da participação popular.

 

3. ALGUMAS NOÇÕES SOBRE O ESTATUTO DA CIDADE: PLANO DIRETOR E

GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

Visando regulamentar norma constitucional, foi promulgada, em 10.7.01, a Lei nº 10.257, de- nominada Estatuto da Cidade, tendo como obje- tivo a regulamentação do espaço urbano.

Dentre os institutos previstos no Estatuto da Cidade, destaca-se o plano diretor dos Municí- pios, visto como o mais completo instrumento de condução da política pública municipal, no que concerne aos seus aspectos urbanos.

Segundo disposição legal12, o plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvi- mento e expansão urbana e parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

De fato, o plano diretor é verdadeira política pública. Formalmente, trata-se de uma lei; to- davia, materialmente, é uma política pública, com suporte em normas constitucionais13.

 

  • Segundo Maria Paula Dallari Bucci, os Títulos da Ordem Econômica e da Ordem Social também contêm algumas referências a políticas públicas.
  • Aqui, em sentido lato.
  • Marcos Augusto Perez, “A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas públicas”, pp. 163/176, in Maria Paula Dallari Bucci (org.), Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 171.

12. Art. 40 da Lei nº 10.257/01.

  • O art. 182 da Constituição Federal fixou: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo (…)”.

 

 

O Plano Diretor é a lei geral que estabele- ce as prioridades nas realizações do governo local, pois deve abordar todos os problemas identificados a partir de um detalhado estu- do sobre o espaço físico territorial urbano. Dessa forma, contribui para que sejam sana- das as necessidades de maior urgência e relevância da população nele identificada, disciplinando e controlando as atividades ur- banas em benefício do bem-estar da coleti- vidade14 .

O plano diretor é o instrumento básico de ordenação das cidades. É a lei municipal que deve tratar de todo o processo de desenvolvi- mento urbano. É nele que estão definidos os pi- lares sobre a função social da propriedade urba- na, englobando o território do Município como um todo, e deve ser aprovado por lei municipal15.

Tem por função prática atenuar os proble- mas urbanos, conferindo às cidades crescimen- to ordenado e sustentável, com qualidade de vida e justiça social. Por outras palavras, pode-se di- zer que o plano diretor visa minimizar os proble- mas sociais existentes no ambiente citadino, pro- blemas estes que envolvem múltiplas variáveis e devem ser estudados de forma global.

Um problema social existe e é formulado pela interação conjunta de múltiplas variáveis numa situação carregada de problemas, e é estudado para que se compreenda e calcule o resultado de conjunto sobre a situação, a fim de que se tome uma decisão sobre os problemas. Trata-se de multiefeitos prove- nientes de multicausas. Na prática, essa multicausalidade não ocorre só dentro de um departamento convencional da ciência, cer- cado por fronteiras analíticas e sem realida- de, e sim entre os departamentos da ciên- cia, dentro da unidade do jogo social. Trata- se de um vetor transdepartamental de cau- sas, que gera um fator transdepartamental de efeitos na totalidade do espaço de jogo16.

Como problema transdepartamental, um pro- blema social, para ser solucionado, exige o co- nhecimento da prática social. Aqui reside um pon- to de extrema relevância. Se o plano diretor visa eufemizar os problemas sociais existentes nas cidades, e se estes problemas são transdeparta- mentais, verificáveis na prática social, devem existir mecanismos que aliem a convivência práti- ca com o aspecto técnico, ou seja, que possibili- tem a interação da realidade social com a ciência.

Bem por isso, o legislador não cuidou de es- boçar apenas a definição de plano diretor. Pelo contrário, previu diversos instrumentos necessá- rios à condução de uma boa política urbana, den- tre os quais se destaca o mecanismo denomina- do gestão democrática das cidades. É aqui que se permite a convivência da teoria (ciência, tec- nicismo) com a prática, conforme será delineado a seguir.

A plena realização da gestão democrática é, na verdade, a única garantia de que os instru- mentos de política urbana introduzidos, regula- mentados ou sistematizados pelo Estatuto da Cidade (tais como o direito de preempção, o di- reito de construir, as operações consorciadas etc.) não serão meras ferramentas a serviço de concepções tecnocráticas, mas, ao contrário, ver- dadeiros instrumentos de promoção do direito à cidade para todos, sem exclusões17 (grifo não consta no original).

Seguindo a lição acima esposada, percebe- se que é a participação popular que propicia o acesso das pessoas às políticas de desenvolvi- mento urbano, inclusive legitimando a ação do Poder Público, a qual se dá com a participação dos destinatários dessas políticas.

As diretrizes do Estatuto expressam ain- da a obrigatoriedade da participação popu- lar tanto no processo de elaboração quanto no de gestão dos planos diretores, propi-

 

 

  • Janaina Rigo Santin, “A gestão democrática municipal no estatuto da cidade e a teoria do discurso habermasiana”, disponível em ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/download/5177/3893. Acesso em 9.9.10.
  • O Art. 40 da Lei nº 10.257/01 assim reza: “O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”.
  • Carlos Matus, Teoria do Jogo Social, São Paulo, FUNDAP, 2005, p. 30.
  • Maria Paula Dallari Bucci, “Gestão democrática da cidade”, pp. 334/354,  in Adilson  Abreu  Dallari,  Sérgio  Ferraz, (org.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 337.

 

 

ciando o debate, trazendo os conflitos e apre- sentando opções para as intervenções a se- rem realizadas no Município pelo Poder Pú- blico. Portanto, a lei local deve dispor para a realização de audiências públicas e debates públicos, garantindo amplo acesso e publici- dade desses encontros, principalmente às entidades não governamentais, associações etc., que estão direta ou indiretamente, em razão de seus compromissos sociais, aptas a identificar as necessidades e prioridades locais, garantindo legitimidade ao Plano Di- retor18.

Para que as cidades cresçam de forma orde- nada, não é interessante ter somente cres- cimento, que, usualmente, ocorre de forma desor- denada, ocasionando sérios entraves para o Po- der Público, ou seja, sérios problemas sociais. É necessário, sobretudo, que haja desenvolvimento urbano, e que esse desenvolvimento seja susten- tável, o que se consegue, principalmente, atra- vés da elaboração de um eficiente plano diretor.

Conforme previsto nos incs. I e II do § 4º do art. 40 do Estatuto da Cidade, para a elaboração do plano diretor, deve haver a participação da população, através de audiências públicas, de debates com os vários segmentos da população. A gestão democrática das cidades propicia a participação da população na tomada de deci- são, garantindo maior legitimidade ao processo político, bem como maior representatividade.

A garantia da gestão democrática das cida- des se faz por meio de órgãos colegiados de política urbana, debates, audiências e consultas públicas, conferências sobre assunto de interes- se urbano, iniciativa popular de projeto de lei e

de planos, programas e projetos de desenvolvi- mento urbano19.

A gestão democrática das cidades apresen- ta-se como um meio de participação da popula- ção na definição das mais diversas questões mu- nicipais, de acordo com os seus interesses e particularidades próprias. As associações e as sociedades civis organizadas possuem interes- sante papel na concretização desse instituto, cuja importância é fundamental para o exercício da democracia.

O sucesso da implementação desse instru- mento depende, essencialmente, da formação de capital social20 na comunidade, o que, a partir dos dados ofertados pelo Ministério das Cidades, não é possível mensurar.

Dessa forma, evidente que a participação da população é essencial na definição dos problemas urbanos, bem como na determinação das espe- cificidades desses problemas. Através da partici- pação ativa da população, o Poder Público muni- cipal pode, mais facilmente, definir as priorida- des para as cidades, elaborando um plano diretor em consonância com os anseios da população, alinhando-se à prática social e tornando a ação social horizontalizada.

 

4. AINDA A GESTÃO DEMOCRÁTICA: MEIO DE INSTRUMENTALIZAÇÃO DE

POLÍTICA PÚBLICA

Como visto, o plano diretor municipal pode ser conceituado como uma política pública em concreto, inclusive com previsão no Texto Cons- titucional21. A formação desse plano não prescin- de da manifestação da vontade comunitária, e este foi o objetivo do legislador quando previu o instrumento jurídico da gestão democrática das

 

 

  • Patrícia Faga Iglecias Lemos, et. al. “Estatuto da Cidade e Plano Diretor como instrumentos da política pública de desenvolvimento urbano”. Estudo de caso, Bairro da Vila Nova Conceição, São Paulo, Capital, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Ano 8, nº 16, jul./dez., 2005, pp. 285/298, p. 289.

19. Art. 43 da Lei nº 10.257/01.

  • “A ideia conceitual de capital social tem a ver com a capacidade de cooperar e de confiar para a produção do bem público, e não para a depredação social”. Relaciona-se, intimamente, com a cultura local. Em específico com “uma cultura cívica mais intensa, um maior envolvimento da população com a coisa pública (res pública), uma sociedade mais comprometida com o bem público, mais cooperativa e mais confiante nos seus pares. A cultura cívica, associada à confiança interpessoal, traduz-se em um recurso fundamental de poder para os indivíduos e para as sociedades, em um capital – capital social – cujos benefícios são comuns a todo o grupo ou a toda a sociedade”, in Maria Celina Soares D’Araújo, Capital Social, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003. pp. 11 e 15.
  • Art. 184 da Constituição Federal.

 

cidades como forma de participação da comuni- dade.

O que se pretende defender é, portanto, a participação da população, por meio da gestão democrática, como forma de inserir outros ato- res na formulação da política pública – o plano diretor.

Como já mencionado, serão utilizados dois exemplos do processo de elaboração dos planos diretores ocorridos em Municípios distintos, os quais foram considerados bem-sucedidos pelo Ministério das Cidades. Faz-se necessário, por- tanto, um panorama inicial sobre a realidade des- ses Municípios, a fim de que se possa compreen- der melhor como ocorreu o aludido processo, o que pode ser visualizado através da análise da tabela a seguir.

descrição da experiência de elaboração do plano desse Município – tenderam mais para o atendi- mento das questões de moradia, habitação e sa- neamento básico, uma vez que o local sofre com constantes enchentes, comuns na região amazô- nica. Por seu turno, o Município de Batalha, no Estado do Piauí, por possuir uma zona rural mui- to extensa, procurou preocupar-se com os pro- blemas das comunidades da zona rural.

A descrição das experiências selecionadas demonstra quão importante é o intercâmbio da ciência com a prática. Portanto, para sustentar a tese aqui proposta, e até mesmo para que seja feita uma comparação com as descrições das experiências nos Municípios selecionados, par- tiu-se do conceito de jogo social, proposto por Matus22, o qual pretende correlacionar a teoria com a prática, discutindo o grave problema que

 

 

Município Caracterização

do Contexto Local

Contexto Geográfico Economia Local
Batalha (Piauí) Situada na região norte do Estado do Piauí, possui área de

1.553,8 km2

Possui uma área rural muito extensa,

encontrando-se dividida em seis comunidades na zona rural.

A base da economia local é a agropecuária e o comércio.

Parte da população vive da economia informal, aflorando o problema do desemprego.

Laranjal do Jari (Amapá) Situada em uma

área arenosa, de região ribeirinha, possui 31.170,30 km2,

localizando-se na parte sul ocidental do Estado do Amapá.

Município de grande extensão, que tem sérios problemas

ambientais, ligados, principalmente, ao alagamento, e com habitações construídas sobre palafitas.

O Município é de difícil acesso e possui diversas comunidades, aonde só é possível o

deslocamento por meio de barco.

Mineração e produção de celulose.

O alto interesse econômico pela região acarreta problemas de crescimento populacional desprogramado.

 

 

Como se pode perceber, os Municípios es- colhidos possuem realidades distintas, merecen- do, dessa forma, processos diversos de elabora- ção do plano diretor participativo, a fim de que se atendam as suas peculiaridades.

Em cada Município exemplificado, as reali- dades geográficas, por si sós, já são suficientes para que se possa perceber que a discussão da proposta do plano deve ser feita de acordo com as características locais.

Exemplificativamente, no Município de Laran- jal do Jari, no Estado do Amapá, as propostas apresentadas – como adiante se demonstrará na

existe na teoria da prática, priorizando a horizon- talidade dos problemas existentes na praxe pú- blica, o que ocorre na formulação do plano diretor.

Na relação entre teoria e prática, há dois casos, com diferentes graus de dificuldade. O primeiro concerne à prática do profissio- nal que trabalha no âmbito de sua especiali- dade. A universalidade e as ciências tradicio- nais respondem razoavelmente bem a esse primeiro caso. O segundo caso refere-se ao dirigente que exerce uma função pública. Essa é uma prática social que ultrapassa as fronteiras da formação especializada tradi-

 

  • Carlos Matus, Teoria do Jogo Social, São Paulo, FUNDAP, 2005.

 

 

cional proporcionada pelas faculdades uni- versitárias e apresenta problemas comuns muito específicos, que não são reconheci- dos pelas ciências23.

Na elaboração do plano diretor municipal deve ser levada em consideração a opinião de outros atores envolvidos no processo (ou ao menos que por ele sejam beneficiados ou dele sejam destinatários).

O conhecimento do profissional, do técnico que elabora o plano, se desvencilhado da reali- dade social (a qual somente é conhecível com o apoio da opinião comunitária), propicia a forma- ção de uma política verticalizada, alheia à hori- zontalidade que se requer quando se trata de gestão pública24.

Na verdade, a prática social extrapola a for- mação profissional, pois exige que se explique a realidade. Em outras palavras, deve haver contex- tualização entre o que se pretende na teoria com

o que realmente acontece na prática. Portanto, a importância da gestão democrática faz-se pre- ponderante, pois permite esse intercâmbio, na medida em que o conhecimento prático (da co- munidade e demais órgãos e agentes envolvidos) auxilia na técnica de formulação do plano diretor.

Todas essas experiências selecionadas, que são fases anteriores ao processo de elaboração dos planos diretores, demonstram como se deu a interligação entre a ciência e a prática. Pela análise do quadro que se segue ver-se-á que houve, nas várias fases anteriores à proposta de aprovação final do plano, diálogos entre diferen- tes atores, nos mais diversos níveis de conheci- mento.

A descrição da experiência demonstra que a proposta para elaboração do plano não foi ver- ticalizada, participando dela os mais diferentes personagens, nas mais variadas fases, umas mais técnicas e outras mais empíricas.

 

 

Município Descrição da Experiência
Batalha (Piauí)
  1. O processo para elaboração do Plano Diretor Participativo – PDP – começou por influência do Ministério das Cidades.
  2. Mobilização de lideranças comunitárias e da população local.
  3. Realização de dois eventos, contando com audiência pública para explicação

da proposta. Formalização do Núcleo Gestor e contratação de consultoria especializada.

  1. Capacitação do Núcleo Gestor e formação de Comissões Temáticas.
  2. Realização de seis oficinas de trabalho em cada comunidade-polo.
Laranjal

do Jari (Amapá)

  1. Parceria firmada com a Universidade Federal do Amapá para estudo dos problemas municipais.
  2. Formação de uma Equipe “Força Tarefa Local” para aprimoramento dos trabalhos (comunidade, professores, funcionários públicos, estudantes).
  3. Participação de ONGs no processo deliberativo.
  4. Dificuldade de levantamento do material.
  5. Após levantamento dos dados, discussão do material selecionado.
  6. Seleção de 12 áreas de acordo com a densidade da população.
  7. A equipe abordou cerca de 2.200 habitações, atingindo um público

médio de 12 mil pessoas, que permitiu a realização de um seminário explicativo.

  1. Publicação da Revista do Plano Diretor Participativo para o amplo conhecimento do público e da sociedade.
  2. Elaboração de um conjunto de mapas temáticos permitindo a

elaboração do texto da proposta básica a ser discutida em audiência pública.

 

 

 

  • Carlos Matus, ob. cit., p. 21.
  • Trabalha-se aqui com a ideia de Matus no sentido de que “a prática social extrapola a formação profissional e, em qualquer âmbito, exige, dentre outras questões, que se explique a realidade, que se identifiquem e avaliem proble- mas e causas críticas, que se calcule sobre o futuro incerto, que se façam e avaliem propostas sobre os produtos e resultados de nossas ações, que se resolvam conflitos de conhecimento, que se faça análise estratégica para construir viabilidade, que se estudem os outros atores que participam do jogo social, que se faça o monitoramento da evolução e das mudanças na realidade que esteja sob intervenção, e que se projetem ou modernizem organizações” (pp. 21/22).

 

 

A iniciação dos trabalhos deu-se não por pressão popular, mas por iniciativa de órgão do Executivo. Houve a participação de órgãos técni- cos (no caso do Município de Batalha, a contrata- ção da consultoria especializada, e, no caso do exemplo do Município de Laranjal do Jari, a par- ceria com os corpos docente e discente da Uni- versidade Federal do Amapá).

Importante também mencionar a presença da burocracia durante todo o processo. Em am- bos os Municípios analisados houve a participa- ção de funcionários públicos das respectivas pre- feituras25.

Não obstante a presença maciça de técni- cos durante todo o processo de preparação das propostas, houve, também, a influência de “pes- soas do povo”, o que se deu nas audiências pú- blicas, na formação de núcleos gestores, nos de- bates realizados nas comunidades.

Nesse contexto, uma questão mostra-se de suma importância em toda essa discussão: o problema da linguagem. A ciência tende a utilizar uma linguagem mais técnica, estranha ao co- nhecimento dos outros atores que vivenciam o problema na prática. A linguagem deve compor- tar a comunicação com o destinatário. Matus en- xerga o problema da linguagem como comum à prática horizontal26, pois a linguagem é um meio

de dominação e é também uma ferramenta privi- legiada para acumular conhecimentos.

(…), na prática, os diálogos sociais são opacos e controlados. Não são sempre inte- ligíveis, o conteúdo proposicional é às vezes falsificado, se aplicam a atos incorretos e se ocultam as intenções. Além disso, conforme sejam os interesses dos jogadores e o contro- le que eles exercem sobre o sistema de con- versações, podem ser amplificados ou amor- tecidos, de acordo com a conveniência de cada jogador27.

A linguagem precisa, então, ser contextuali- zada com o público-alvo. No caso da elaboração do plano diretor, na medida em que se deseja a participação comunitária, é imprescindível que se utilize uma linguagem que permita a comunica- ção com o destinatário – a população.

Para que se compreendam melhor os exem- plos citados a seguir, necessário se faz a obser- vância de uma tabela demonstrativa das realida- des e caracterização dos Municípios analisados.

Nessa tabela, observam-se os atores que participaram do processo, como também a me- todologia utilizada para cada fase do processo, percebendo-se que, de acordo com cada fase, foi utilizada uma metodologia diversa.

 

 

Município Critério Participativo Metodologia
Batalha (Piauí)
  1. Em um primeiro momento, mobilização da população urbana e rural para participar dos eventos de lançamento da proposta.
  2. Acontecimento dos eventos na Câmara Municipal com presença da população das zonas rural e urbana, ONGs, autoridades, lideranças comunitárias e sindicais, entidades religiosas.
  3. Formação do Núcleo Gestor por 42 representantes das comunidades.
  4. Capacitação do Núcleo Gestor pela Consultoria contratada.
  5. Formação de Comissões Temáticas dentro do Núcleo Gestor.
  6. Realização, pelo Núcleo Gestor, de seis oficinas nas seis comunidades-polo da zona rural.
  1. Em um primeiro momento, demonstração da necessidade de criação

do PDP para a população.

  1. Reunião e capacitação em nível técnico, em conjunto com treinamento da consultoria realizada.
  2. Quando da demonstração das propostas para a população mais carente, utilização de uma linguagem mais acessível

(recursos audiovisuais, sonoros, cartazes).

 

 

 

  • Em  Laranjal  do  Jari,  o  Poder  Público  municipal,  inclusive,  utilizou-se  da  participação  de  diversos  funcionários públicos para integrar a chamada Força Tarefa Local.
  • Carlos Matus, Ob. cit., p. 40.
  • Carlos Matus, Ob. cit., p. 42.

 

 

 

Laranjal do Jari (Amapá)
  1. Criação da Força Tarefa Local, formada por funcionários da prefeitura, representantes comunitários, estudantes e professores.
  2. Participação de ONGs e comunidades sociais em zonas de difícil acesso.
  3. Participação de diversos segmentos sociais, de entidades e de representantes das áreas envolvidas para discutirem o teor do material

a ser levantado.

  1. Levantamento de dados estatísticos em relação a 12.000 habitantes.
  2. Demonstração, para a comunidade, dos dados levantados e da

proposta do plano.

  1. Discussão em nível técnico, pelos funcionários do Município, com o corpo docente e discente da UNIFAP.
  2. Discussão das propostas

com a população, principalmente em reservas extrativas, por

meio de faixas, cartazes, fitas de vídeo, folders e DVD.

  1. Utilização de questionários para levantamento de dados perante a população

(visita aos domicílios).

  1. Utilização, em momento final, de linguagem técnica com os componentes da Força Tarefa Local.

 

 

Perceba o exemplo prático que ocorreu no Município de Batalha, no qual o Núcleo Gestor, em conjunto com os técnicos da Consultoria con- tratada para a elaboração do plano diretor, reali- zou seis oficinas de trabalho na zona rural, com o objetivo de sensibilizar os moradores das co- munidades para participarem da elaboração do plano diretor. Como o público-alvo eram pessoas de pouca formação escolar (zona rural de um Município pobre do Nordeste), a preocupação foi a utilização de uma metodologia de linguagem direta, com recursos didáticos simples (cartazes, fotos, som etc.)28.

No Município de Laranjal do Jari ocorreu o mesmo. Quando da proposição das primeiras ideias, as quais foram elaboradas por funcioná- rios da prefeitura em parceria com professores e estudantes da Universidade Federal do Amapá, a linguagem utilizada foi mais elevada. Todavia, quando foi necessária a apresentação da pro- posta para a população mais carente, sobrema- neira aqueles que vivem afastados da zona urba- na, foram utilizados recursos que permitissem a comunicação (faixas, cartazes, fitas de vídeo).

É fácil perceber que, nos exemplos citados, os objetivos foram atingidos. A utilização de metodologia diversa, mais prática e menos téc- nica, permitiu a junção da teoria com a prática, horizontalizando o conhecimento técnico (daque-

les que tinham a função de elaborar o plano: Núcleo Gestor, consultoria contratada, professo- res universitários, funcionários públicos) e atin- gindo o objetivo esperado: a participação da po- pulação.

Há, também, um terceiro aspecto que merece destaque: a participação da população. De que for- ma ocorreu? Quem pôde participar? Quais os ato- res envolvidos nesses processos? O quadro an- terior demonstra como se deu essa participação.

Um exemplo bastante interessante ocorreu no Município de Laranjal do Jari. Por estar inseri- do em uma região de floresta, e por tratar-se de um Município de criação recente e de extrema pobreza e problemas sociais, outros fatores tive- ram de ser considerados29.

Em Laranjal do Jari houve não somente a participação da comunidade. Prioritária foi a parti- cipação de organizações não governamentais (ONGs), revelando certa organização social inicial do Município e contribuindo de forma espe- cial no processo democrático. Essas ONGs, por exemplo, foram as responsáveis por disseminar a proposta elaborada nas reservas extrativistas, muito comuns no Município.

A experiência de Laranjal do Jari foi marcada, também, pela participação da Universidade Fe- deral do Amapá – UNIFAP, por meio de convênio

 

  • Disponível  em  www.cidades.gov.br,  acesso  em  9.9.10.
  • O Município surgiu do povoado criado pelo projeto Jari Celulose. “À margem das riquezas produzidas, o povoado foi crescendo de forma desordenada e sem qualquer planejamento, transformando-se numa extensa área de palafitas sobre as águas, configurando-se, assim, em uma das maiores favelas fluviais do mundo, convivendo com graves problemas ambientais”. Acessado em www.cidades.gov.br, em 9.9.10.

 

 

firmado com o Município. Vários técnicos da UNIFAP, especialmente alunos e professores do curso de Arquitetura e Urbanismo, trabalharam em conjunto com movimentos sociais, gestores municipais e com as mais diversas comunidades, alcançando o objetivo de participação da comu- nidade.

É significante deixar claro que essa expe- riência em Laranjal do Jari não foi suficiente para resolver todos os problemas urbanos existentes no Município, até mesmo porque existem limita- ções econômicas, sociais e ambientais.

É importante observar que as limitações econômicas, políticas e ambientais existentes não podem ser enfrentadas por ações isola- das (de âmbito exclusivamente municipal), face ao alto custo da infraestrutura necessá- ria para a promoção de desenvolvimento através de níveis satisfatórios de qualidade de vida (…)30.

Em Batalha, quando das propostas iniciais, o Município possuía uma população de 24.127 habitantes, de acordo com censo demográfico de 2000 (IBGE). Efetivamente, só participaram 23 pessoas em cada oficina, o que totalizou 138 pessoas. Não houve participação majoritária dos habitantes do Município, mas, de qualquer modo, é inegável que ocorreu a inserção de outros ato- res na elaboração da política pública, o que per- mitiu uma apreensão mais aprimorada da reali- dade social.

Perceba que, nesses dois exemplos citados

– Municípios de Laranjal do Jari, no Amapá, e de Batalha, no Piauí –, a participação de outros ato- res fez-se presente. O processo de elaboração do plano não se limitou aos agentes estatais en- carregados de sua condução31.

É interessante, todavia, estabelecer alguns pontos relativos ao processo participativo na

preparação do plano. Em outras palavras: qual o critério de entrada que permitiu o ingresso de determinado cidadão nesse processo? E como se formulou esse critério?

Em um primeiro momento, necessário asse- verar que a participação absoluta de todos os habitantes citadinos é algo inviável na prática. Deve haver algum critério de representação. Po- liticamente, a representação da população faz- se por meio da Câmara de Vereadores, encarre- gada da aprovação do plano32.

Ocorre que, em momentos anteriores à apro- vação do plano, há a sua discussão com a popu- lação. Aqui reside a indagação: quem tem legiti- midade para participar dessa discussão? Todos do povo? Somente alguns legitimados? E quem são esses legitimados?

Mais uma vez o exemplo do Município de Batalha, no Piauí33. Como demonstra a tabela descritiva da experiência, naquele Município, a prefeitura realizou um evento inaugural, lançan- do a ideia do plano diretor, mobilizando lideran- ças comunitárias e a população local na sede municipal, dividindo-se em dois eventos: a Etapa Preparatória Municipal e uma Audiência Pública. Esses eventos ocorreram em dois turnos, na Câmara Municipal, com a presença de autorida- des, lideranças comunitárias e sindicais, entida- des religiosas e população.

Após esse primeiro momento, houve a for- mação do Núcleo Gestor Local, composto por 42 representantes das comunidades e formalizado por meio de Portaria Municipal.

Portanto, a participação da população deu- se por meio de um Núcleo Gestor Local, forma- do por líderes comunitários, além da facultativida- de do comparecimento no momento do lança- mento da proposta na Câmara de Vereadores. Nesse caso, por mais que não tenha existido a

 

  • Acessado em www.cidades.gov.br, em 9.9.10, p. 8.
  • Segundo consta no Banco de Experiências de Planos Diretores Participativos, obtido no site www.cidades.gov.br, em 9.9.10, “o interesse da população de Laranjal do Jari pelo processo participativo fortaleceu o eixo de cidadania por todo o Município”, p. 9.
  • Mais uma vez, não custa relembrar que o plano diretor, materialmente, é uma política pública, mas sua formalização se faz por meio de lei ordinária municipal, a qual exige aprovação da Câmara de Vereadores.
  • Dados obtidos no Banco de Experiências de Planos Diretores Participativos, obtido no site www.cidades.gov.br, em 9.9.10, p. 2/3.

 

 

participação absoluta de toda a população, ine- gável que houve representatividade.

Em Laranjal do Jari, a população participou através de entrevistas realizadas nas habitações e que atingiram, aproximadamente, 12.000 habi- tantes. Houve, também, a participação das co- munidades extrativistas, através do auxílio pres- tado pelas ONGs. A participação técnica deu-se por meio de funcionários públicos34 e por profes- sores e estudantes da UNIFAP. Também houve a participação de outros segmentos sociais.

A simples presença de outros atores nesse processo de formulação já é capaz – embora não suficiente – para conformar a política pública criada (plano diretor municipal) com os interes- ses da população. Permite-se, assim, um viés transdepartamental35 ao processo técnico, que, geralmente, é inserto na formulação das políti- cas públicas, pois, na verdade, “os problemas da prática política e os problemas do povo comum cruzam em sentido horizontal os compartimen- tos verticais do conhecimento proporcionado pela ciência tradicional”.36

Tendo em vista o aspecto acima ressaltado, de que existem limitações à participação da po- pulação durante todo o debate, um último ponto deve ser abordado: como são conciliados os in- teresses contrapostos na elaboração de uma po- lítica pública, ou seja, quais interesses prevale- cem, faticamente, quando da finalização do pro- grama?

Nos exemplos mencionados ao longo desse texto, os dados obtidos não são suficientes para a correta averiguação dos reais interesses en- volvidos, razão pela qual não se pode formar um juízo crítico mais aprofundado.

Mas, comumente, na prática, tendem a pre- valecer os interesses de grupos mais fortes, ou mesmo daqueles que dominam uma melhor técnica e que dispõem de uma melhor forma de comunicação. Bem por isso que Lahera37 acen- tua que algumas pessoas e corporações têm maior capacidade de incluir, hierarquizar e ex- cluir temas da discussão social, na ideia de que a agenda pública constitui-se como um jogo de poder, de onde se constroem legitimidades e ile- gitimidades, ainda que de maneira implícita.

Na verdade, o plano diretor carece de apro- vação pela Câmara Municipal. É dizer, por mais que existam debates, seminários, audiências públicas e toda sorte de participação popular e de organismos representativos de classes, no final, toda proposta, previamente debatida e ela- borada, deve ser aprovada, por meio de lei, pela Câmara de Vereadores.

Em tese, os interesses dos vereadores de- vem coincidir com os interesses daqueles que os legitimaram para representá-los. Ocorre que, na prática, existem outros fatores que influenciam no processo decisório, como, por exemplo, os interesses de grupos imobiliários, políticos, eco- nômicos38.

Mas, sem sombra de dúvida, a ocorrência de debates, audiências, questionários, pesquisas, e demais instrumentos que propiciem maior par- ticipação popular, torna a elaboração dessa polí- tica pública – plano diretor – mais horizontalizada.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que pôde ser observado através da aná- lise dos exemplos citados, a participação de ou- tros atores no processo de elaboração do plano

 

 

  • Os dados obtidos não demonstram quais foram os critérios utilizados para a escolha desses funcionários que fizeram parte da Força Tarefa Local. Consta, apenas, que foram selecionados funcionários por áreas respectivas, como, por exemplo, saúde e educação.
  • No caso do Município de Batalha, já mencionado, os membros do Núcleo Gestor se dividiram em Comissões Temáticas, envolvendo os seguintes temas: Educação, Cultura e Lazer; Desenvolvimento econômico,  Agricultura  e  Pecuária; Saúde; Infraestrutura, Meio Ambiente e Turismo; Política e Administração; Regularização Fundiária. Acesso em…. p. 3.
  • Carlos Matus, ob. cit., p. 29.

37. Ob. cit., p. 74.

38. Esses fatores, determinantes na tomada de decisão, não aparecem em dados e estatísticas disponíveis à população, pois fogem dos objetivos atinentes ao interesse coletivo, razão pela qual se torna impossível fazer uma análise crítica mais  apurada.

 

 

diretor municipal propicia maior aproximação da . Lei nº 10.257, de 13.2.1995. Regula-

política com a realidade local.

A gestão democrática propicia um contato do gestor público com a comunidade. Percebeu- se que com a elaboração do plano diretor em parceria com a comunidade houve significativo avanço no debate das questões políticas, poden- do propiciar, quando da concretização do plano, melhoria na qualidade de vida da população, além de maior distribuição de justiça social.

A abertura para a participação popular é, por si, um avanço em termos de debate democráti- co. Mas não só a abertura é suficiente para que haja avanço significativo nesse sentido, pois de- vem existir condições que propiciem a efetiva participação popular. No entanto, a análise dos dados disponíveis não foi suficiente para men- surar como se deu todo o processo, de que for- ma ocorreu a atuação dos atores e qual o fator de influência exercido por eles.

Os dados que foram utilizados são concer- nentes a exemplos bem-sucedidos de dois Muni- cípios brasileiros, com uma base selecionada de informações sem controle das informações não consideradas ou excluídas. Ademais, não se teve previsão dos reais alcances dos instrumentos implementados para que pudesse ser feita uma comparação entre eles, bem como para poder fornecer informações sobre as dificuldades de cada realidade social tratada para a implemen- tação do plano diretor sob o foco da gestão de- mocrática das cidades.

Ademais, tendo em vista a indisponibilidade de exemplos não exitosos, tornou-se impossível fazer uma análise comparativa mais detalhada entre bons e maus exemplos de gestão demo- crática das cidades em plano diretor, o que acaba por trazer uma análise parcial da proposta e invia- bilizar, por omissão de informações, uma análise mais detalhada dos obstáculos a serem supera- dos para o êxito de uma proposta como esta em ocasião diversa.

 

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