A discricionariedade na contratação pública emergencial e a possível ocorrência de atos de improbidade administrativa

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INTRODUÇÃO

O tema improbidade administrativa é de in- quietante discussão doutrinária e jurisprudencial. E essas discussões não ocorrem por um acaso, eis que justificadas pela errônea interpretação que, por vezes, atribui-se ao instituto. Alarga-se, descomedidamente, o conceito de improbidade, como se a intenção do legislador constituinte originário fosse imputar como ímprobo todo e qualquer ato praticado em desfavor da Admi- nistração.

Pretende-se, dessa forma, abordar no pre- sente artigo tema relacionado à inocorrência de improbidade administrativa quando das condutas praticadas em decorrência de contratação direta, por dispensa de licitação, nos casos de emergên- cia. De antemão, desde já se deve salientar que, nada obstante a importância que a matéria com- porta em todas as suas nuances, não se falará de todas as hipóteses que a Lei no 8.666/1993 estabeleceu como excludentes da licitação (lici- tação dispensada, dispensável e inexigível), até porque este não é o objetivo deste trabalho. Bem assim, não se ambiciona estender-se sobre o tema da contratação pública.

De igual modo, não se almeja tecer longas considerações sobre improbidade administrativa, eis que o espaço aqui existente não se reserva a tal desiderato. É que a finalidade central deste ensaio tem por escopo contrastar a existência de discricionariedade que reside no ato adminis- trativo praticado quando da contratação direta, na dispensa de licitação com base em situação

emergencial, em relação à norma legal encartada no art. 10, inc. VIII, da Lei no 8.429/1992.

Para tanto, o trabalho encontra-se dividido em três partes fundamentais. Logo de início, tratar-se- -á, por óbvio, da natureza do ato administrativo discricionário, fazendo a correlação necessária com a conceituação de discricionariedade. Em seguida, neste mesmo tópico, será abordada a discricionariedade administrativa em sentido genérico, aprofundando o assunto em relação ao conceito de discricionariedade técnica.

Na segunda parte, abordar-se-á a contratação pública, todavia, com o objetivo especial de dar enfoque à contratação direta em face da dispensa de licitação nos casos emergenciais, mencionan- do, também, a existência de possível discriciona- riedade quando da contratação direta.

Por fim, a última parte cuidará de tratar do tema da improbidade administrativa, iniciando por sua fundamentação constitucional, passando pela específica hipótese do tipo previsto na parte final do retromencionado art. 10, inc. VIII, da Lei no 8.429/1992. Neste mesmo tópico, questionar- -se-á, inclusive, sobre a possibilidade da prática de atos de improbidade administrativa quando diante da existência de condutas culposas.

1. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

1.1. O conceito de discricionariedade

O tema da discricionariedade ganha relevo no presente debate com o objetivo precípuo de avaliar até que ponto faz-se possível e legítima

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a aferição do controle do ato discricionário da Administração Pública praticado pelo Poder Ju- diciário no que diz respeito, especificamente, à contratação direta por dispensa de licitação em situações emergenciais.

Haver-se-á de limitar o tema, nomeadamen- te, como já ressaltado nas notas introdutórias, aos atos administrativos praticados no exercício da função administrativa relacionados à con- tratação pública, com especial destaque para os atos praticados na contratação direta, sem a ocorrência de ampla margem de competitivi- dade.

Partindo, desde logo, para uma conclusão inicial, almeja-se evidenciar que o Poder Público deve (e não apenas pode), em determinadas cir- cunstâncias, quando da contratação direta, agir fundamentado na expertise técnica da própria Administração. Em especial, pleiteia-se, acima de tudo, demonstrar que, em se tratando da edição de atos administrativos técnicos, é a Administra- ção quem pode avaliar as circunstâncias do caso concreto para, posteriormente, agir, entendendo ser ou não possível a contratação direta por dis- pensa de licitação quando diante de situações emergenciais.

A finalidade básica é afastar a suposta prá- tica de improbidade, como traçado na Lei de Improbidade Administrativa (art. 10, inc. VIII) de maneira tão extensa, pela prática de atos que dispensem licitação “indevidamente”. É que a aferição, pelo Judiciário, do conteúdo normativo encartado neste dispositivo legal adentra no controle da discricionariedade do ato por este Poder, defendendo-se, portanto, ser ilegítima tal atuação, ao menos em determinadas circuns- tâncias.

Para tanto, muito embora o cerne da dis- cussão gire em torno da discricionariedade téc- nica, necessário se faz abordar, inicialmente, o conceito de discricionariedade – ou discricio-

nariedade administrativa, para, posteriormen- te, adentrar no âmbito da discricionariedade técnica.

Antes de adentrar no conceito de discriciona- riedade, necessário mencionar o conceito do ato administrativo discricionário,1 que importa, neste ensaio, apenas para que se entenda o que é o ato administrativo praticado com conteúdo de discri- cionariedade, ou imbuído de poder discricionário, o qual pode ser entendido como:

Esse poder de escolha que, dentro dos limites legalmente estabelecidos, tem o agente do Estado entre duas ou mais alternativas, na realização da ação estatal, é que se chama poder discricionário. Poder discricionário é poder, mas poder sob a lei e que só será válido e legitima- mente exercido dentro da área cujas fronteiras a lei demarca.2

José dos Santos Carvalho Filho sustenta que nos atos discricionários:

[…] é a própria lei que autoriza o agente a proceder a uma avaliação de conduta, obviamente tomando em consideração a inafastável finalidade do ato. A valoração incidirá sobre o motivo e o objeto do ato, de modo que este, na atividade dis- cricionária, resulta essencialmente da liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, tra- duzindo, portanto, um certo grau de subjetivismo.3

Arrematando, nada melhor que o conceito de discricionariedade traçado por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo quem:

Discricionariedade é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais ade- quada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.4

  1. Muito embora o conceito de ato administrativo tenha um grau de indeterminação inquietante, tentar-se-á empreender uma conceitua- ção ou, ao menos, uma breve noção. Para Entrena Cuesta (1979, p. 516-517), o ato administrativo é um ato realizado pela Administra- ção de acordo com o Direito Administrativo. Gordillo (2007, Cap. I, p. 2) sustenta que o ato administrativo não tem uma definição unívoca e unitária, tendo havido uma tendência a transladar a noção de ato jurídico própria do Direito Civil ao campo do Direito Administrativo.
  2. COUTO E SILVA, 2004, p. 229.
  3. CARVALHO FILHO, 2012, p. 129.
  4. BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 988-989.

Desdobrando os elementos dessa definição, são notas básicas da discricionariedade: trata- -se de uma porção de liberdade de escolha, de eleição entre mais de uma solução possível em tese, ainda que, diante do caso concreto, só uma possa ser aplicada; tal liberdade é sempre conferida pela lei, mesmo que de forma implícita; ao administrador cabe exercer a sua apreciação subjetiva com o fito de buscar a vontade legal, sempre tendo em vista o melhor atendimento ao interesse privilegiado pela norma.

Não há negar que se trata de modo de atuar da Administração Pública, quer por ter havido uma impossibilidade prática absoluta de a lei prever objetivamente o modo de satisfazer o inte- resse a que visava, quer por ter a lei considerado a situação do administrador mais apta a identi- ficar o melhor modo de fazê-lo. É dizer que, se assim não fosse, ter-se-ia recorrido à vinculação, traçando por completo a conduta a ser adotada pelo administrador.

1.2. A discricionariedade técnica

A abordagem do presente tópico ganha vi- gor na medida em que se defenderá, nas linhas subsequentes, que o ato administrativo, praticado quando no exercício da competência discricioná- ria técnica, é, em verdade, um ato com conteúdo vinculado, para o qual o âmbito de controle passa a ser mais restrito. Em verdade, busca-se, com a conceituação de discricionariedade técnica,5 restringir a valoração do ato administrativo de contratação direta praticado pela Administração, quando editado segundo provas técnicas.

Antes de tudo, deve-se buscar entender o conceito acima referido. E o que se entende por discricionariedade técnica? Trata-se, em verdade, de um conceito multifacetado, que faz referência à crescente influência que a técnica adquire

nas decisões administrativas. Pode ser definida como a possibilidade de escolha, reconhecida à Administração Pública, com base na verificação da existência de certos pré-requisitos de natureza técnica exigida por lei.

A discricionariedade técnica ocorre quando o exame de fatos ou situações relevantes para o exercício do Poder Público exige a utilização de conhecimentos técnicos e científicos de natureza especializada. Entre a discricionariedade admi- nistrativa e a técnica há uma diferença conceitual de fundo, pois que, enquanto na discricionarie- dade administrativa analisam-se os fatos, reali- zando uma escolha e determinando a solução mais adequada, a discricionariedade técnica contém um perfil de julgamento mais restrito, no qual se resolvem os fatos, mas sem valoração de interesse.6

Maria Sylvia Di Pietro pondera que

no direito europeu, o tema da discricionariedade técnica constitui objeto de preocupação para de- finir os limites do controle judicial sobre os atos administrativos.7

A jurisprudência espanhola vem se manifes- tando sobre a impossibilidade de substituição dos critérios técnicos utilizados pelos órgãos expertos da Administração Pública. Nesse sentido, o Tri- bunal Administrativo de Recursos Contratuais de Castilla e León entendeu, em um caso concreto, que a aplicação de critérios de valoração aos ele- mentos avaliáveis mediante juízos de valor está excluída das faculdades do Tribunal, eis que este não pode substituir a decisão valorativa atribuída pelo órgão competente.8

Importa transcrever, também, fidedignamen- te, trecho da fundamentação jurídica de interes- sante julgado do Tribunal Administrativo Central de Recursos Contratuais da Espanha (Recurso

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  1. O referido conceito foi desenvolvido pelo italiano Renato Alessi (1974, v. 1), para quem a discricionariedade técnica não guarda qualquer relação de semelhança com a discricionariedade administrativa, sendo mais uma vinculação. O autor sustenta que existem casos em que a apreciação do interesse público exige a utilização de critérios técnicos e a solução de questões técnicas, tendo a Administração que encontrar a solução correta segundo critérios técnicos.
  2. Disponível em: <http://www.iusexplorer.it/Publica/FascicoloDossier/La_discrezionalità_tecnica/ ?idDocMaster=3580230&idDataBanks= 19&canale=13>. Acesso em: 22 jul. 2013.
  3. DI PIETRO, 2007.
  4. Recurso no 4/2012, Resolución no 4/2012. “La aplicación de criterios de valoración a los elementos evaluables mediante juicios de valor (como sucede en el presente caso) está excluido de las facultades del Tribunal, pues este Órgano no puede sustituir la decisión sobre el concreto valor atribuido a un aspecto de la oferta por otra, ya que ello supondría sustituir el juicio de un órgano experto competente para ello por el juicio de este Tribunal […]”. Disponível em: <http://www.cccyl.es/tribunal/Resoluciones/R004-2012.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2013.

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no 059/2012; Resolución no 080/2012), no qual o Tribunal assegura ser impossível a revisão de questões técnicas fundamentadas pela Adminis- tração, utilizando argumentos jurídicos.

En el fundamento jurídico quinto de nuestra anterior Resolución de 26 de enero de 2012 rechazamos expresamente tales argumentos señalando que “como hemos abundantemente reiterado, es de plena aplicación a los criterios evaluables en función de juicios de valor la ju- risprudencia del Tribunal Supremo respecto de la denominada discrecionalidad técnica de la Administración. Ello supone que tratándose de cuestiones que se evalúan aplicando criterios estrictamente técnicos, el Tribunal no puede cor- regirlos aplicando criterios jurídicos. No se quiere decir con ello, sin embargo, que el resultado de estas valoraciones no pueda ser objeto de análisis por parte de este Tribunal sino que este análisis debe quedar limitado de forma exclusiva a los aspectos formales de la valoración, tales como las normas de competencia o de procedimiento, a que en la valoración no se hayan aplicado cri- terios de arbitrariedad o discriminatorios o que finalmente no se haya incurrido en error material al efectuarla. Fuera de estos aspectos, el Tribunal debe respetar los resultados de dicha valoración.9

Pelo que se pôde perceber dos julgados traçados, o controle do ato administrativo edi- tado com fundamento em discricionariedade técnica é mais restrito, senão impossível de ser realizado, a menos no que se restringe a certos aspectos. Em determinadas situações, impõe-se a utilização da discricionariedade técnica, em que a Administração age, verdadeiramente, de maneira vinculada, não se lhe abrindo margens para decidir de maneira diversa da prevista pelo órgão técnico.

Na jurisprudência nacional, também há posi- cionamento nesse sentido:

Agravo de instrumento. Tutela antecipada. Termo de Recebimento e Aceitação Parcial de

obra em empreendimento de grande porte. Polo gerador de tráfego. Exigência de medidas miti- gatórias. Divisão em fases do empreendimento composto por mais de uma edificação. Discri- cionariedade técnica da Administração Pública. Parecer técnico que aprova o funcionamento da atividade de shopping center, em uma edificação do empreendimento, em razão de ausência de prejuízo ao sistema viário, ante a conclusão de parte das exigências de mitigação de impacto viário. Laudo técnico objetivamente fundamen- tado, pautado em dados, estudos e cálculos. Ausência dos requisitos para tutela antecipada inibitória da aprovação do funcionamento do shopping. Recurso não provido. 1. Antecipação dos efeitos de tutela jurisdicional, para inibir a Administração Municipal de aprovar funciona- mento de empreendimento, é inviável ante a não comprovação dos pressupostos legais (art. 273 do CPC), especialmente quando a discricionarie- dade técnica da Administração aponta para a au- sência de prejuízo ao interesse público.273CPC. 2. “Há decisões administrativas que supõem tal grau de especialização técnica que so- mente aquele que as toma, a partir da con- sideração de elementos altamente técnicos, as pode valorar; assim, o Poder Judiciário deve acatá-las, exercendo unicamente em relação aos erros manifestos que nelas se manifestem; daí porque a administração, nesses casos, goza de liberdade (técnica) de decisão, liberdade que, no entanto, não é absoluta, visto que coartada quando o seu exercício resultar viciado por erro manifesto” (GRAU, Eros Roberto. Discricionariedade técni- ca e parecer técnico, RDP n. 93).10

Em sede de contratação pública direta por dispensa, em se tratando de emergência, a dis- cricionariedade técnica ganha relevo, eis que o conteúdo do caráter emergencial é determinado pela autoridade administrativa competente, no mais das vezes com base em parecer técnico de expert aprofundado sobre o tema.11

  1. Disponível em: <http://www.minhap.gob.es/Documentacion/Publico/TACRC/Resoluciones/ Año%202012/Recurso%200059-2012%20 (Res%2080)%2030-03-12.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.
  2. TJSP: Agravo de Instrumento: AGI no 1265659220128260000, SP 0126565-92.2012.8.26.0000, Rel.: Vicente de Abreu Amadei, 1a Câ- mara de Direito Público, j. em 23.10.2012, publ. em 23.10.2012 (destacou-se).
  3. Precioso exemplo é conferido por Antônio Carlos Cintra do Amaral (2010, p. 81): “Um túnel apresentou vazamentos. A autoridade muni- cipal determinou a realização de uma vistoria, procedida por um engenheiro civil. Este elaborou um laudo técnico, concluindo pela se- gurança do túnel. O agente administrativo, levando em conta o possível risco para a população, entendeu ser mais prudente e razoável ouvir a opinião de um engenheiro de alta qualificação, especialista em túneis. Este recomendou a realização urgente de algumas obras, afirmando em seu laudo que o túnel poderia até ruir, se as providências não fossem tomadas de imediato. À vista desse laudo, o agente administrativo contratou uma empreiteira para realizar os reparos, com base no art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93”.

2. QUANTO À CONTRATAÇÃO DIRETA

O processo de contratação pública não deve ser enxergado com olhos voltados apenas para a licitação em si, sendo esta uma parte do pro- cesso, no qual consta uma fase prévia ampla, de preparação. Com tais colocações, quer-se dizer que, quando a Administração Pública decide, em algumas ocasiões, pela contratação direta, assim o faz arraigada em um juízo de escolha oriundo de todo um estudo prévio, que, por vezes, já identificou ser melhor ou mesmo a única opção possível.

Não se olvida que é regra a licitação, obe- diente ao preceito constitucional encartado no art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal. Porém, existem situações em que à Administração faz- -se impossível licitar, ou mesmo lhe é facultada a realização de procedimento licitatório, residindo, neste último caso, na contratação direta por dis- pensa de licitação.

2.1. A contratação direta: a dispensa de licitação

Nada obstante a licitação ser a regra, em algumas hipóteses, a lei previu a possibilidade de se contratar diretamente, por meio de dispensa de procedimento licitatório. Existem outras formas de contratação direta, sem margem de ampliação de competitividade (inerente a toda e qualquer contratação pública), a exemplo da inexigibilida- de de licitação. Importa, para o presente caso, o estudo da dispensa de licitação.12

Joel Niebuhr, com evidente precisão, asse- gura aspecto importantíssimo relacionado à dis- pensa. É que o autor faz fulgente cautela quanto ao recado constitucional no que pertine à regra básica de licitar e à possibilidade de contrata- ção direta por dispensa de licitação, inclusive alertando não poder o legislador desbordar do precedente interesse constitucional.

Já a dispensa depende de hipótese fática e de autorização legislativa. Melhor explicando: ao

agente administrativo só é lícito dispensar diante de expressa autorização legal; ao legislador, por sua vez, só é lícito autorizar a dispensa de licita- ção pública diante de hipótese fática capaz de sa- crificar o interesse público ou impor-lhe gravame desmedido. […]. Em caso contrário, se o legislador tivesse liberdade para criar hipóteses de dispensa diante de quaisquer situações, a atividade dele potencialmente acabaria por inverter a regra constitucional, cujo teor, repita-se, propugna a obrigação de licitação pública.13

Quando o interesse estatal puder ser satisfei- to por uma competição padrão, e considerando- -se possível a competição, haverá licitação. É que “a inviabilidade de competição é consequência derivada de características existentes na reali- dade extranormativa, que tornam a licitação inútil ou contraproducente”.14 Todavia, de tal realidade, deve decorrer um interesse estatal, interesse público primário. Defende-se, acima de tudo, que o interesse estatal, nas contratações diretas por emergência, é identificado pela própria Adminis- tração.

A liberdade de contratar, para o particular, não encontra a mesma ressonância para a Admi- nistração Pública. É que muito se discute sobre a real existência da autonomia da vontade para o Poder Público. Forte em argumentos contrários à negativa do ideal autonomista, prepondera a re- gra – ou melhor, matriz, de ordem constitucional, da Administração Pública – da licitação.

Portanto, licitar não é uma faculdade da Administração, mas um dever, mister constitucio- nalmente delineado pelo legislador constituinte originário que norteia a atividade administrativa e garante a preservação do interesse público, visando, sobremaneira, à escolha da proposta mais vantajosa para o Poder Público. Bandeira de Mello acentua que:

[…] sendo encarregada de gerir interesses de toda a coletividade, a Administração não tem sobre estes bens disponibilidade que lhe confira o direito de tratar desigualmente àqueles cujos interesses

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  1. Embora intrigante, não se aprofundará com maior rigor ao tema. Ainda assim, pode-se entender a licitação inexigível quando há impos- sibilidade de competição, inviabilidade de realização da licitação. Muito embora também intrigante, e ainda que desnecessária maior largueza na diferenciação, cumpre estabelecer a distinção entre licitação dispensável e dispensada, “a distinção básica entre licitação dispensada e dispensável reside no fato de que, nesta última, o administrador poderá, se assim o desejar, realizar a licitação” (FURTA- DO, 2007, p. 422).
  2. NIEBUHR, 2011, p. 206.
  3. JUSTEN FILHO, 2008, p. 342.

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representa. Não sendo o interesse público algo sobre que a Administração dispõe a seu talante, mas, pelo contrário, bem de todos e de cada um, já assim consagrado pelos mandamentos legais que o erigiram à categoria de interesse desta classe, impõe-se, como consequência, o tratamento im- pessoal, igualitário ou isonômico, que deve o Poder Público dispensar a todos os administrados.15

Como já mencionado, a licitação deve, roti- neiramente, ser observada pela Administração. Não obstante a existência do dever de licitar, existem situações em que a Administração Públi- ca tem a faculdade, fundamentada no interesse público, de não realizar a licitação, estabelecendo o ordenamento exceções ao princípio constitu- cional do dever de licitar, o que, no ordenamento brasileiro, encontra-se previsto no art. 24 da Lei no 8.666/1993.

Não é induvidoso que o permissivo legal não induz à desobediência de normas mínimas. Bem pelo contrário, pois

a contratação direta não autoriza atuação arbi- trária da Administração. No que toca ao princípio da isonomia, isso significa que todos os parti- culares deverão ser considerados em plano de igualdade.16

Todavia, não menos clara é a possibilidade de efetuar uma contratação direta, desde que o interesse público assim o exija. Acentua-se, para este estudo, a contratação direta emergencial, de que cuida o art. 24, inc. IV, da Lei no 8.666/1993, o qual reza:

Art. 24. É dispensável a licitação: …………………………………………………………..

IV – nos casos de emergência ou de calami- dade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pes- soas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias

consecutivos e ininterruptos, contados da ocor- rência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos.17

Parece restar claro que para a análise da situação emergencial urge a configuração de um estudo competente. Não se desborda da premissa de que a emergência depende de uma valoração objetiva, de conteúdo técnico, e não meramente subjetivo, mas arraigado em uma objetividade oriunda de um posicionamento acu- rado de um órgão competente, que, detectando a situação emergencial, possa impor, mediante opinião de conteúdo técnico, a situação manifesta que induz a contratação direta. Nesse sentido:

La urgencia es una cuestión de hecho, con- creta, como ya dijimos, que debe ser debidamente acreditada e fundada en los pertinentes estudios técnicos y verificada por la autoridad competen- te. La declaración de urgencia no puede quedar librada a la facultad discrecional del funcionario competente para contratar. Debe ser también merituada por los órganos asesores y de control.18

É de se notar, contudo, que a decisão de não licitar decorre de uma valoração da situação e do interesse social envolvido, voltados, contudo, a uma margem de tecnicismo que identifica o caráter emergencial da contratação.

2.2. Quanto à discricionariedade na con- tratação emergencial

De se acentuar, inicialmente, que, inclusive para o legislador, não existe possibilidade am- pliada para atuar discricionariamente quanto às hipóteses de dispensar licitação.

[…] da mesma forma que é vinculante para o agente público o dever de selecionar o futuro contratado sem licitação quando a competição for inviável, também será vinculante o dever de realizar seleção por meio de licitação quando a competição for viável. Face a essa afirmação, cabe dizer que tal vinculação somente será afastada se houver hipótese legal de dispensa. Nesse caso, a vinculação cede terreno para a discricionariedade. Assim, caberá ao agente decidir se realiza a licita- ção ou se a dispensa. Portanto, a obrigatoriedade

15. BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 76.
16. JUSTEN FILHO, 2008, p. 283.
17. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 22 jul. 2013. 18. DROMI, 2010, p. 142.

de licitação é determinada, fundamentalmente, por duas condições básicas: a) a viabilidade de competição e b) a ausência de hipótese legal, tornando-a dispensada (ou dispensável). Então, a obrigatoriedade da licitação pressupõe a supera- ção das duas condições apontadas.19

Tendo em conta que o ato de dispensa, por si só, não constitui a contratação pública como um todo, mas apenas uma fase deste procedimento, alguns prolegômenos devem ser ponderados. Ora, em alguns casos, e aqui se cita, exemplifica- tivamente, o art. 24, inc. IV, da Lei no 8.666/1993, o administrador entende pela contratação direta, com base na dispensa, em virtude de uma si- tuação emergencial evidenciada. Calha, para este específico exemplo, a seguinte indagação: a quem assiste a competência para verificar, diante de uma dada situação fática, ter havido ou não a emergência? Ao Judiciário, ao Ministério Público ou à Administração?

Parece restar claro que a emergência, nas suas mais variadas facetas, encontra amparo em uma dada situação em que quase que invariavel- mente a Administração possa aferir. Daí parece também decorrer, eis que de igual modo evidente, uma margem de discricionariedade para a Ad- ministração escolher se se faz possível realizar um amplo procedimento licitatório ou se contrata diretamente, por meio de dispensa de licitação, forte na emergência identificada.

É a Administração, acima de tudo, quem conhece as nuances inerentes à fase interna da contratação, inclusive, e em especial, aquela voltada à preparação do normal processo licita- tório, de modo que deve a ela remanescer certa margem de escolha para que possa agir na me- lhor conjectura exigível para o atendimento do interesse público primário. É dizer: tomando como foco o exemplo acima identificado, nem sempre proceder a uma ampla e irrestrita licitação é ga- rantia inarredável para o melhor – e verdadeiro – atingimento do interesse público.

Portanto, se não há essa discricionariedade que se sustenta, não há atuação lídima da Admi-

19. MENDES, 2013, p. 399.

nistração em muitos e tantos casos. Um alerta, contudo, merece – e deve – ser destacado: em hi- pótese alguma sustenta-se a possibilidade irres- trita de atuação discricionária da Administração para proceder a contratações públicas sem que haja a prevista forma de escolha que o legislador constituinte originário – não inadvertidamente – entendeu ser o norte da atuação estatal. Preten- de-se, tão somente, afastar a fluidez imprecisa de alguns conceitos que, a despeito de estarem previstos em lei (v.g. “indevidamente” do art. 10, inc.VIII, da Lei no 8.429/1992), não informam, sob nenhum ângulo, qualquer direção do que deva – e possa – ser a correta atividade da Administração, pois a esta, volta-se a enfatizar, cabe a normal identificação, em significativas hipóteses, de qual a melhor atuação para o cumprimento do deside- rato estatal: busca do interesse coletivo.

O juízo sobre a urgência não é arbitrário, porém, remanesce ao administrador margem de discricionariedade. O interesse determinante para que não se realize a licitação é o interesse social, público primário, até mesmo porque a urgência é uma questão de fato, que deve ser determinada pela autoridade competente após estudos técni- cos. Em verdade, existe uma vinculação para a Administração em proceder à contratação com base na urgência, pois, se o órgão técnico iden- tifica que houve emergência, a Administração, para atender ao interesse público primário, deve, necessariamente, contratar emergencialmente.

Inegável a existência das chamadas emer- gências criadas, que ocorrem devido às falhas da Administração, em especial de seus funcionários. Porém, destas não está a se tratar pelo momento, ainda que, para efeitos de dispensa de licitação, possa existir a possibilidade de se contratar emergencialmente.20

Portanto, a discricionariedade da Administra- ção, em determinados casos, quando, por exemplo, há parecer de órgão técnico, passa a ser evidente, tendo ela o dever, ou um poder-dever, de contratar emergencialmente, sob pena de ofensa ao inte- resse público.

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20. O Tribunal de Contas da União não faz distinção, para fins de aplicação do art. 24, inc. IV, da Lei no 8.666/93, entre a emergência natural e a emergência criada, decorrente da incúria administrativa, embora, quanto a esta, exista o dever de responsabilização. Nesse sentido: TCU, Acórdão no 1.138/2011 – Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, DOU de 11.5.2011.

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3. A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

3.1. Fundamento constitucional

O conteúdo da improbidade administrativa encontra-se definido no art. 37, § 4o, da Consti- tuição Federal, o qual vaticina:

Art. 37. Omissis. …………………………………………………………..

§ 4o os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Antes de se aprofundar no tema, com a finura que o estudo requer, imperiosa se faz a distinção entre alguns conceitos que a Constituição trouxe em seu bojo relacionados, todos, à improbidade. A nosso sentir, os conceitos devem ser precisa- dos com evidente clareza, a fim de que haja a possibilidade de pretender-se uma conceituação do que é improbidade em momento posterior. De todos esses conceitos que se turvam perante a probidade, o mais relevante é o conceito de moralidade.

Nesse passo, interessa o que se pode en- tender por moralidade administrativa, adotando, para tanto, o conceito de Márcio Cammarosano,21 para quem a moralidade administrativa refere-se a valores morais juridicizados e não a qualquer valor moral.22 Desta feita,

o princípio da moralidade administrativa está re- ferido, assim, não diretamente à ordem moral do comportamento humano, mas a outros princípios e normas que, por sua vez, juridicizam valores morais.23

O autor sustenta, com bastante propriedade, que não é qualquer valor moral, decorrente da moral comum, que pode ser associado ao prin- cípio da moralidade administrativa, e assim o faz em defesa, inclusive, do princípio da segurança

21. CAMMAROSANO, 2006.

jurídica. Com efeito, o renomado doutrinador arre- mata, com clareza e percuciência brilhantes, que:

É por essa razão que o princípio da mora- lidade administrativa não agrega ao mundo do Direito, por si só, qualquer norma moral que, se violada, implicaria invalidade do ato. Não há que se falar em ofensa à moralidade administrativa se ofensa não houver ao Direito. Mas só se pode falar em ofensa à moralidade administrativa se a ofensa ao Direito caracterizar também ofensa a preceito moral por ele juridicizado, e não é o princípio da moralidade que, de per si, juridiciza preceitos morais.24

O recorte acima empreendido, com arrimo da doutrina trazida, traz suporte para o que se pleiteia sustentar em momento posterior, de tal sorte que o conceito de improbidade não pode ser substancialmente ampliado a ponto de preju- dicar a intenção imediata do constituinte. Daí que se defenderá a impropriedade da utilização da improbidade por atos culposos. Em verdade, sobre a pecha de atos ímprobos tem-se atribuído a maior sorte de condutas administrativas, as quais, em alguns casos, sequer guardam relação com improbidade, ou melhor, de improbidade não se trata.

Como já salientado, a despeito do conceito traçado – diante do qual se vinculou no presente trabalho –, invariavelmente, a doutrina adminis- trativista pátria deposita, no conceito de improbi- dade administrativa, violação a dever moral.

Improbidade é o antônimo e significa a inobservância desses valores morais, retratan- do comportamentos desonestos, despidos de integridade e usualmente ofensivos aos direitos de outrem.25

Segundo José Roberto Pimenta Oliveira:26

A Constituição não se contentou em positivar o princípio da probidade como diretriz valorativa positiva e negativa, informativa de qualquer atri- buição pública. Não se conteve em atribuir-lhe base normativa expressa. Ultrapassou os limites da normatividade primária para adentrar na for-

  1. Não obstante a corrente adotada neste artigo, existem doutrinadores que ampliam o conceito de moralidade administrativa a todo e qual- quer valor moral, não fazendo nenhuma distinção entre a moral comum e a moral administrativa. Nesse sentido: FREITAS, 2008, p. 94-108.
  2. CAMMAROSANO, ob. cit., p. 113.
  3. Idem, p. 114.
  4. CARVALHO FILHO, 2013, p. 98.
  5. OLIVEIRA, 2009, p. 176.

mulação constitucional direta de ilícito e sanção singularmente vocacionada à guarda ou defesa do império da probidade. Ao fazê-lo, a Constitui- ção transformou o valor juridicizado em bem jurí- dico fundamental, com domínio punitivo próprio.

Parece-nos acertada a lição de José Afonso da Silva,27 para quem a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu uma consideração mais especial da Constituição. Sustenta o autor que a probidade administrativa consiste no dever de o funcionário servir à Administração com honestidade, sendo, portanto, o desrespeito a este dever o fato carac- terizador da improbidade administrativa.

Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e cor- respondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.

E isso tudo enseja, como não poderia ser de outra forma, aplicações equivocadas dos dispo- sitivos da Lei de Improbidade, além de ocasionar condenações que não encontram fundamento no sistema jurídico brasileiro, uma vez que diversas decisões judiciais que envolvem tal controvertido tema decorrem de interpretações de um texto legal incongruente, lacunoso e absolutamente mal-elaborado.

Ao deixar de definir o conteúdo jurídico do que venha a ser o ato de improbidade adminis- trativa, a Lei no 8.429/1992, permitiu ao intérprete uma utilização ampla da ação de improbidade administrativa, gerando grandes equívocos, pois possibilitou que atos administrativos ilegais, insti- tuídos sem má-fé, ou sem prejuízo ao ente público fossem confundidos com os tipos previstos na presente lei.28

Portanto, por improbidade administrativa não se pode entender todo e qualquer ato da Administração. Não é a mera ilegalidade que proporciona uma ação ímproba. “A improbida- de administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade”.29 Não se atribui, de igual modo, como ímproba qualquer violação à moral comum, ou qualquer ato culposo. Assim fosse, estar-se- -ia infringindo a mínima previsibilidade que se

espera – e requer – de um sistema jurídico que se pretenda seguro.

3.2. A improbidade administrativa pela dispensa de licitação: art. 10, inc. VIII, da Lei no 8.429/1992

A Lei no 8.429/1992 elenca três categorias como atos de improbidade administrativa: no art. 9o, os atos de improbidade administrativa que im- portam enriquecimento ilícito; no art. 10, prevê os atos de improbidade administrativa que causem prejuízo ao Erário; no art. 11, por fim, os atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. Interessa, para o presente exame, apenas a leitura do art. 10. Salienta o art. 10, inc. VIII, da Lei no 8.429/1992:

Art. 10. Constitui ato de improbidade adminis- trativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entida- des referidas no art. 1o desta lei, e notadamente:

…………………………………………………………..

VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente.

Percebe-se, do dispositivo legal citado, um lapso de fluidez evidente, em especial na parte final, referente à dispensa indevida do processo licitatório. É neste ponto, porquanto, que reside a problemática: o que é dispensar indevidamente uma licitação?

Parece não restar dúvidas, diante das lições já desenvolvidas acima, de que existe uma margem de vinculação estatuída pelo legislador quanto às possibilidades deferidas à Adminis- tração no que concerne à dispensa de licitação, as quais se encontram expressamente previstas e delineadas nos incisos do art. 24 da Lei no 8.666/1993. Dito de outro modo: não cabe dis- pensa onde não se afigura uma hipótese legal permissiva, não custando relembrar que, para este estudo, declina-se somente a análise do inc. IV, que cuida da emergência.

Entretanto, a vagueza da norma pode incidir quanto à interpretação, que pode ser concedida

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27. SILVA, 2005, p. 669.
28. MATTOS, 2006, p. 2.
29. TJMS, ApCv no 2006.011997-4/0000-00, Rel. Des. Dorival Renato Pavan, j. em 18.9.2008.

462 NDJ – BLC – MAIO/14

em relação à expressão “dispensar imotivada- mente”. É que, como já dito e sobredito, a dis- pensa pode ter ocorrido fundamentada em ato de órgão da Administração que entendeu ter havido a situação emergencial apta a propiciar a dispensa da licitação.

Ademais, a norma vacila ao permitir que se atribua como passível de condenação por ato de improbidade as condutas culposas. A má-fé é premissa de ato ilegal e ímprobo, e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitu- cionais da Administração Pública coadjuvados pela má-intenção do administrador.

Com efeito, para a configuração do ato de improbidade administrativa é imprescindível, obri- gatoriamente, a ocorrência do elemento subjetivo do dolo, não bastando, portanto, a mera culpa do agente.

Sim, porque sem a figura do dolo é virtual- mente impossível a caracterização de improbi- dade administrativa, porque o ímprobo é aquele que teve a vontade, a intenção ou o animus de causar lesão ou prejuízo ao erário público, bem como aos princípios constitucionais que norteiam a Administração.30

Dispensar licitação, por si só, não é, a nosso sentir, suficiente para a comprovação de um ato doloso. O dolo, nestes casos, requer, acima de tudo, a fustigação ao princípio da competitividade ampla, por mais razões, como já se sustentou, se a dispensa decorreu de uma conduta da Adminis- tração fundamentada em um ato de tecnicidade comprovada, cuja avaliação de valores jurídicos não se faz possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se sustentar no presente traba- lho a impossibilidade de imputação de ato de improbidade administrativa quando o administra- dor realiza contratações diretas fundamentadas em situação emergencial decorrente de pronto parecer oriundo de órgão competente. O obje- tivo não foi, contudo, alargar, excessivamente, a contratação direta pela Administração, até mesmo porque, se assim fosse, haveria ofensa ao preceito constitucional que direciona a obrigatoriedade de realização de procedimentos licitatórios.

De outra parte, não se intui, também, abonar toda e qualquer contratação direta emergencial, haja vista o conhecimento que se tem das infin- dáveis “confecções” de emergências criadas, no mais das vezes no desígnio de ofender a intenção manifesta do legislador constituinte originário quanto à realização de normais procedimentos licitatórios com ampla e isonômica margem de competitividade.

Não se olvida, contudo, que a expressão contida na Lei de Improbidade Administrativa, concernente ao tema proposto, senão imprecisa, é, ao menos, demasiado ampla, ofendendo o mí- nimo de segurança jurídica que se faz necessária à atuação estatal e tolhendo da Administração a margem de discricionariedade que possui quanto à possibilidade de contratação direta diante de flagrante emergência.

Intentou-se, acima de tudo, defender a mar- gem de atuação discricionária que remanesce à Administração quando esta, nada obstante atuar fundada em poder discricionário, em verdade opera atida a conhecimentos técnicos que su- portam o atuar administrativo.

Sustenta-se, portanto, que a Administração, na busca do interesse público primário, não ape- nas pode, como deve agir com base em conhe- cimentos técnicos que são distraídos do mundo jurídico e que, portanto, não oportunizam avalia- ção jurídica, e, por isso, não importam em atos de improbidade, não existindo, consequentemente, critérios jurídicos para afirmar que a conduta administrativa, que entendeu pela contratação emergencial, é ímproba.

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30. COPOLA, Gina. 2008, p. 766-781, p. 768.

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